Cultura

O homem que moldou o século 20

Em nova obra que combina biografias políticas e fatos históricos, o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, aos cem anos de idade, detalha o convívio que teve com diversas personalidades — entre elas, Richard Nixon e Margaret Thatcher

Crédito: Divulgação

Kissinger e Nixon: o poder e a liderança vistos sob a ótica do pragmatismo (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Há cerca de um mês, para reduzir a tensão causada por divergências em relação à guerra da Ucrânia, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, pediu um encontro com o seu equivalente na China, Li Shangfu. A resposta foi negativa. Na terça-feira 18, no entanto, o militar chinês recebeu de braços abertos outra personalidade norte-americana: Henry Kissinger. “Ele fez contribuições históricas e desempenhou um papel insubstituível para melhorar a relação entre os dois países”, afirmou Wang Yi, o mais importante diplomata chinês. Aos 100 anos de idade, o conselheiro norte-americano ainda influencia a geopolítica mundial.

Henry Kissinger: influência sobre o cenário geopolítico, apesar das críticas por sua atuação além das fronteiras (Crédito:Kay Nietfeld)

Poucos indivíduos moldaram o mundo como Henry Kissinger. Ex-secretário de Estado de dois presidentes, Richard Nixon e Gerald Ford, o alemão de origem judaica é um personagem complexo cuja marca atravessa o tempo. Suas reflexões sobre as personalidades e a política do século 20 são o tema de seu novo livro, Liderança — Seis Estudos Sobre Estratégia. A obra aborda as características de grandes líderes e suas posições diante dos desafios enfrentados.

Operação condor

Qualquer análise sobre o legado de Kissinger não pode ignorar sua participação na promoção de ditaduras na América Latina durante a década de 1970. É apontado como o mentor da Operação Condor, que visava a anular a influência do comunismo na região, inclusive por meio de ações violentas.

A ditadura brasileira se beneficiou dessa política externa. Durante esse período, o governo dos EUA forneceu apoio ao regime militar e o tratou como um aliado estratégico na luta contra os adversários da ditadura. Documentos revelam que Kissinger manteve contato frequente com autoridades brasileiras, discutindo temas sensíveis, como cooperação militar, troca de informações de inteligência e até mesmo atentados contra dissidentes políticos.

A opinião sobre os poderosos

Sobre Margaret Thatcher: “A Grã-Bretanha que emergiu de sua liderança foi, para o mundo, uma nação de confiança renovada. Ela era uma parceira valiosa para os EUA” (Crédito:Divulgação)
Sobre Anwar Sadat: “Sua grande realização, a paz com Israel, é lembrada por poucos, embora tenha sido a base para os Acordos de Oslo e outros processos de normalização diplomática na região” (Crédito:Divulgação)
Sobre Charles de Gaulle: “Para o general, a amizade não apagava as lições da história ou as exigências da estratégia. Seus comentários belicosos tinham como objetivo analisar as reações do interlocutor” (Crédito:Divulgação)

A relação com o Brasil foi um exemplo extremo da realpolitik que o diplomata defendia. Achava necessário manter a região sob influência norte-americana, mesmo que isso significasse apoiar regimes autocráticos. Para seus detratores, que não são poucos, a priorização dos interesses dos EUA sobre a defesa da democracia minou a credibilidade do país não apenas na América Latina, mas em todo o mundo.

Basta dizer que ele foi um dos idealizadores da guerra do Vietnã e contribuiu para os massacres no Laos e Camboja. Ironicamente, em 1973, foi agraciado com o Nobel da Paz junto com o vietnamita Le Duc Tho, por seu papel no fim do conflito que ele mesmo havia promovido. Le Duc Tho recusou o prêmio.

Liderança oferece um olhar fascinante sobre os princípios que Kissinger julgava importantes. A obra traz as impressões de Kissinger sobre Konrad Adenauer, primeiro-ministro alemão que assumiu o país após a derrota na Segunda Guerra Mundial; Charles de Gaulle, que conseguiu restaurar a confiança dos franceses na segunda metade do século 20, após a ocupação nazista; Richard Nixon, enfrentando a ascensão da União Soviética e restabelecendo as relações com a China; Anwar Sadat, presidente do Egito que assinou o primeiro tratado de paz com Israel; Lee Kuan Kew, promotor da união nacional em Cingapura; e Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, mestre do conservadorismo, responsável e eficaz ao lidar com a crise econômica dos anos 1980.

Kissinger, que mantém uma das consultorias mais renomadas do mundo e é conselheiro do presidente Joe Biden, defende a tese de que a liderança requer uma compreensão profunda do contexto histórico, o equilíbrio das forças em jogo e o pragmatismo diante dos problemas. Apesar das críticas, ele também possui muitos admiradores.

Esses alegam que sua abordagem pragmática da política foi crucial para manter o equilíbrio de poder entre as potências na década de 1960. Segundo eles, foi graças a Kissinger que o mundo não entrou em guerra. Mas sua poderosa figura não ficou livre das ironias.

No filme Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, sátira ao perigo nuclear, o protagonista de sotaque alemão interpretado por Peter Sellers e seduzido pela ideia do apocalipse é claramente inspirado nele. À medida que seu legado continua a ser objeto de debate, o novo livro é essencial para compreender sua visão e como ela foi essencial para moldar o século 20.

Afinal, como vimos no caso da visita à China nessa semana, Henry Kissinger continua a exercer a liderança — dentro e fora dos EUA.