Brasil

O 8 de Janeiro não morreu

O ódio fomentado pelo bolsonarismo resiste, como mostra o recente ataque ao ministro Alexandre de Moraes. Os seguidores do ex-presidente mudaram suas táticas, mas o uso da violência com fins políticos permanece mesmo com a reação das instituições

Crédito: Divulgação

Andreia Munarão, Alex Zanatta e Roberto Mantovani Filho em SP: “Sem motivação política” na agressão ao ministro (Crédito: Divulgação)

Por Marcos Strecker e Mirela Luiz 

As agressões sofridas pelo ministro Alexandre de Moraes e sua família no aeroporto de Roma, no dia 14, mostram que a onda de violência política fomentada por Jair Bolsonaro nos últimos anos ainda está longe de ser debelada. Reafirmam, ao contrário, que as instituições precisam se manter vigilantes e atuar com rigor exemplar para impedir que a ameaça autoritária ressurja. O fantasma do golpe se mantém, e o presidente do TSE é um alvo óbvio.

Relator dos principais inquéritos que correm no STF contra os grupos que atentaram contra a ordem democrática, procuraram subverter as eleições e por fim culminaram nos ataques bárbaros às sedes dos Três Poderes em janeiro, Moraes estava com a família na Itália após comparecer a um evento.

No aeroporto, sofreu agressões verbais do empresário Roberto Mantovani Filho, de sua mulher, Andreia Munarão, e do genro deles, Alex Zanatta. Eles teriam xingado o ministro de “bandido”, “comunista” e “comprado”. O filho de Moraes, o advogado Alexandre Barci de Moraes, de 27 anos, recebeu um tapa.

O ministro fez uma representação sobre o episódio à PF, que já ouviu os agressores. As imagens do ataque foram solicitadas à Interpol, que já as recolheu e encaminhou.

De acordo com a PF, mesmo tendo ocorrido no exterior, os crimes podem ser apurados no Brasil. Os três poderão ser indiciados por crimes contra a honra, agressão e possivelmente por atos antidemocráticos.

Alexandre de Moraes é o relator dos inquéritos sobre os atos antidemocráticos no STF (Crédito:Mateus Bonomi)

O episódio em si já é suficientemente preocupante. Porém, mais do que isso, é alarmante por expor que as forças do obscurantismo político sobreviveram aos ataques do 8 de janeiro e continuam atuantes. De acordo com um relatório da UniRio, até março deste ano, o País já havia registrado 114 ações de pessoas que tinham discordância de pensamento. O próprio pleito do ano passado foi cercado de tensão, com episódios de extrema violência.

Em julho, um guarda municipal petista foi morto a tiros em Foz do Iguaçu (PR) por um policial penal, que se declarava bolsonarista. Outro crime semelhante e igualmente bárbaro aconteceu no interior do Mato Grosso. Na véspera da eleição, a deputada bolsonarista Carla Zambelli perseguiu um cidadão com revólver em punho nas ruas de São Paulo.

Aliado de Bolsonaro, o ex-deputado Roberto Jefferson jogou uma granada e atirou com tiros de fuzil contra agentes da PF. A tentativa de invasão à sede da PF em Brasília, em dezembro, seguida de quebra-quebra e ônibus incendiados, dá a dimensão da gravidade. Houve até a instalação de um artefato explosivo nos arredores do aeroporto local.

É fato que a prisão de centenas de arruaceiros que depredaram as sedes dos Três Poderes serviu para conter o ímpeto golpista. O cerco judicial aos auxiliares de Bolsonaro que trocavam planos de sublevação também acuou as vozes mais radicais. Mas isso foi suficiente para desarmar os espíritos e recolocar a política em seu campo natural, do confronto civilizado de ideias?

Inelegibilidade

“O problema é que a coisa ficou muito polarizada. Os bolsonaristas são muito radicais. Agora que o ex-presidente foi declarado inelegível, pode melhorar. Vamos ter que esperar as eleições municipais no ano que vem. Pode haver alguma tentativa de pacificação e redução de animosidades”, contemporiza o cientista político David Fleischer, professor da UnB.

De fato, a decisão do TSE de tirar Bolsonaro do jogo eleitoral por oito anos, por abuso de poder político e ataque à Justiça Eleitoral, acuou o principal fomentador do ódio político no País.

Diante disso, ele tentou se adaptar ao jogo político-partidário, mas seu fracasso em liderar a oposição no Congresso mostra que o caminho institucional não vai lhe favorecer. Isso não significa, no entanto, que a tentação autocrática foi afastada.

A punição aos vândalos do 8 de janeiro não eliminou a ameaça golpista (Crédito:Divulgação)

O professor de Literatura Comparada da UERJ João Cezar de Castro Rocha, que se dedicou nos últimos anos a estudar o discurso de ódio da extrema direita, considera que Bolsonaro chegou ao seu limite como político e perderá relevância. “No entanto, não se deve subestimar seu impacto como cabo eleitoral”, afirma.

Castro Rocha está lançando o primeiro volume de uma trilogia sobre o assunto: Bolsonarismo – Da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico (ed. Autêntica). Para ele, o ex-presidente fez em primeiro lugar o uso inteligente e estratégico da guerra cultural. Ou seja, usou uma poderosa máquina eleitoral que transferiu para a arena política o engajamento típico das redes sociais, com a imposição do medo e do ódio.

A despolitização reduziu tudo à disputa de narrativas fundadas em fake news e em teorias conspiratórias.

Para o especialista, a primeira grande crise na base de Bolsonaro aconteceu por causa do seu comportamento criminoso na pandemia, o que lhe custou a reeleição.

Vítimas da hostilidade

Xingamentos e violência causados por seguidores de Jair Bolsonaro visam autoridades e se reproduzem dentro e fora do País.

Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal foi alvo de ataque por bolsonaristas no aeroporto de Miami. No salão de embarque enquanto passava pelo guichê, manifestantes batiam palmas e gritavam “sai do vôo”, “pede para sair”. O ministro ainda foi vaiado e xingado de “ladrão” e “lixo”. (Crédito:Reprodução/Redes sociais)

Cristiano Zanin

O novo ministro do STF foi hostilizado por um bolsonarista enquanto escovava os dentes no banheiro do aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília, quando ainda era advogado e atuava em favor do presidente Lula. (Crédito:Divulgação)

Cármen Lúcia

Ministra do STF foi alvo de ofensas misóginas por parte do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB). Em um vídeo publicado nas redes sociais, Roberto Jefferson comparou a ministra a “prostitutas”, “arrombadas” e “vagabundas”. (Crédito:Divulgação)

Gilberto Gil

O cantor Gilberto Gil, de 80 anos, foi insultado por um grupo de apoiadores do ex-presidente enquanto andava com sua esposa Flora Gil, na saída do jogo do Brasil, em uma das partidas pela Copa do Mundo do Qatar (Crédito:Reprodução)

Os que decidiram continuar apoiando-o se radicalizaram. “O bolsonarismo deixou de ser de caráter meramente político ou ideológico e se converteu em uma crença de traços fundamentalistas”, diz. Ou seja, o movimento passou a adotar o comportamento das seitas religiosas.

A terceira metamorfose, segundo o professor, deságua no que o País assiste atualmente: a agressão física.

Ela passou a ser usada como intimidação e com fins políticos. “Do ponto de vista simbólico, a agressão ao ministro Alexandre de Moraes é a continuidade da ação terrorista do 8 de janeiro por outros meios”, avalia. Segundo o professor, “uma parcela significativa do bolsonarismo atravessou o Rubicão e tornou-se terrorismo doméstico”.

Odio dá lucro

O capitão atrai seguidores também por outros fatores. A polarização ideológica, afinal, é um modelo exitoso de negócio. A radicalização tornou-se rentável nas redes sociais.

É o que a Polícia Federal apurou em relação ao blogueiro Allan dos Santos, por exemplo, que auferia grandes receitas na internet antes de fugir para os EUA.

Simpatizantes do capitão também atuam para deslegitimar o Legislativo. É o caso dos deputados Abílio Brunini, Gustavo Gayer e Nikolas Ferreira, todos do PL, partido do ex-presidente, aponta Castro Rocha.

“O que está em jogo é nada menos do que a sobrevivência da democracia. Se as instituições democráticas forem deslegitimadas, especialmente o Poder Judiciário, uma nova tentativa de golpe tem mais chance de ser exitosa.”
João Cezar de Castro Rocha, professor da UERJ

Os exemplos se multiplicam. Esse comportamento não surpreende, pois o próprio Bolsonaro já xingou publicamente Alexandre de Moraes de “vagabundo” e “canalha”.

João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada (UERJ): “Do ponto de  vista simbólico, a agressão ao ministro Alexandre de Moraes é a continuidade da ação terrorista de  8 de janeiro por outros meios” (Crédito:Divulgação)

No mais recente ataque ao presidente do TSE, os bolsonaristas se sentiram livres para atacá-lo imaginando que no exterior não seriam fiscalizados, aponta o jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior.

“A punição aos participantes de 8 de janeiro não foi suficiente para acalmar essas pessoas de classe média alta do interior próspero de São Paulo”, afirma.

Ele lembra que o bolsonarismo consegue explorar o ódio à Justiça. E existe uma agressividade latente que se manifesta, por exemplo, nas pesquisas que apontam o medo da população de o Brasil virar comunista.  Levantamento do Ipec de março passado apurou que 44% dos brasileiros acham que essa possibilidade é plausível sob o governo Lula.

“Isso só prova que não existe nenhuma racionalidade nesse pensamento. É a antipolítica, que precisa de um inimigo. As redes sociais alimentam essa posição de antagonismo”, afirma.

Reale Júnior, por outro lado, avalia que algumas manifestações do atual presidente facilitam essa narrativa. Por exemplo, quando Lula deu apoio entusiasmado ao venezuelano Nicolás Maduro e declarou que “a democracia é relativa”.

O episódio com o presidente do TSE também mostrou a dificuldade em se combater o extremismo, que afinal de contas não é monopólio apenas da direita.

O autor dos ataques, Roberto Mantovani Filho, já foi candidato a prefeito em sua cidade em 2004, quando concorreu como aliado de Lula. O mandatário, é bom lembrar, foi enfático em condenar suas ações.

“Precisamos punir severamente pessoas que ainda transmitem o ódio. Um cidadão desses é um animal selvagem, não é um ser humano”, afirmou. E emendou: “Essa gente que renasceu no neofascismo tem de ser extirpada”.

Mais comedido, o atual ministro da Justiça, Flávio Dino, condenou o ataque e defendeu a apuração republicana da PF. Os presidentes do Senado (Rodrigo Pacheco) e da Câmara (Arthur Lira) também foram firmes em defender Moraes, assim como o ex-ministro e atual senador Sergio Moro.

Os autores do entrevero tentaram negar a agressão e afirmaram que não houve motivação política. Mas essa tese pode ser desmontada pelas provas.

Com autorização da presidente do STF, Rosa Weber, a PF deflagrou uma operação na terça e apreendeu telefones celulares e computadores nos endereços do trio, em Santa Bárbara d’Oeste (SP). Segundo a PF, embora a apuração vise crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal de Moraes, há elementos indicando uma possível relação com os fatos apurados no inquérito dos atos antidemocráticos.

Alguns especialistas consideraram essa ação desproporcional, mas o governo, o ministro da Justiça e membros da Corte discordam. As primeiras análises dos vídeos da agressão, pela PF, corroboram a versão de Moraes e desautorizam a descrição feita pelos acusados.

O PSD, atual partido de Roberto Mantovani Filho, abriu sindicância e pode expulsá-lo da legenda.

A rota da paz

Mas o caminho para desarmar os espíritos é longo. No Congresso, poucos apostam que o principal instrumento de investigação contra o extremismo bolsonarista, a CPMI dos Atos Antidemocráticos, tenha algum resultado concreto. O próprio governo Lula combateu a CPMI, que por pouco não foi capturada pelo próprio bolsonarismo para fustigar a democracia.

É quase consenso em Brasília que a maior chance de responsabilização dos ataques são os inquéritos no STF sob relatoria do próprio ministro Alexandre de Moraes.

Outro instrumento para frear o golpismo seria a lei da Fake News, mas ela foi travada porque o governo não conseguiu negociá-la com os parlamentares, e a base bolsonarista se aliou às big techs para impedir a regulação das redes sociais, sob o falso argumento da defesa da liberdade de expressão.

É um resultado preocupante, mas não surpreendente, já que nem os EUA conseguiram aprovar legislação semelhante (a Europa conseguiu).

E há as propostas capciosas, como foi o projeto da deputada Dani Cunha para blindar políticos. Sob o falso pretexto de proteger a liberdade de manifestação das autoridades, a norma seria um salvo-conduto para que os radicais atacassem a democracia usando a própria imunidade parlamentar.

No fim, o maior exemplo para combater a ameaça antidemocrática está nas mãos da própria vítima do episódio lamentável em Roma.

O ministro Alexandre de Moraes tem mostrado paciência, energia e sobretudo resiliência para enfrentar os riscos contra a democracia, com o apoio decisivo dos colegas do STF. A escalada testou as instituições, que até agora prevaleceram. Mas não se deve recuar.