O planeta ‘derrete’ e provoca medo
A era de extremos climáticos causados pelo aquecimento global virou realidade e acende o alerta internacional. A onda inédita de altas temperaturas no Hemisfério Norte, com picos de mais de 50°, pode até ampliar a tragédia com mais de 61 mil mortos ocorrida na Europa no verão passado. Os governos precisam agir já
Por Thales de Menezes
O mundo acompanha uma onda de calor sem precedentes no Hemisfério Norte. Estados Unidos, Canadá, toda a Europa e parte da Ásia estão registrando cotidianamente temperaturas acima dos 40º. Em alguns lugares, o termômetro ultrapassa a marca dos 50º, provocando cenas até engraçadas, como turistas tomando banho dentro de fontes em praças públicas para se refrescar, mas também provocando medo.
No verão do ano passado, apenas na Europa cerca de 61 mil mortes foram associadas diretamente às altas temperaturas. Agora, com a formação novamente do El Niño, o fenômeno meteorológico que esquenta a região central do Oceano Pacífico e provoca alterações climáticas por todo o planeta, o desequilíbrio fica mais acentuado e ameaçador.
Os números são impressionantes. Justamente naquele que o mercado de turismo chamou de o primeiro “verão pleno” na Europa depois da pandemia de Covid-19, ou seja, o primeiro sem restrições em nenhuma fronteira, a circulação difícil com o excesso de turistas nas ruas ficou ainda mais prejudicada com as altas temperaturas.
Na Itália, o recorde do ano é na Sicília, com 46,8°, enquanto a capital, Roma, chegou aos 46°. Os termômetros ultrapassaram 40° também na França, na Alemanha e na Espanha, esta com o recorde histórico na Catalunha, com 45°. Na China, os 52,2° registrados em Xinjiang é a maior marca na história do país para o mês de julho.
66,7°
No Irã, a maior sensação térmica registrada no ano; o corpo humano é afetado pela combinação de temperatura externa acima de 36°e umidade do ar muito baixa
-22°
Na contramão do calor extremo, a Patagônia, no sul da Argentina, chega à temperatura mais baixa do ano em áreas habitadas. É a instabilidade do El Niño
John Nairn, especialista em calor extremo da Organização Meteorológica Mundial, ligada à ONU, afirmou que os eventos vão continuar crescendo em intensidade.
“O fenômeno El Niño vai amplificar a ocorrência das ondas de calor”, disse o cientista, acrescentando que os incêndios na América do Norte e na Grécia são apenas o início de uma série.
Essa persistência de temperaturas quentes por períodos cada vez mais longos deu para Phoenix, no Arizona (EUA), um recorde indesejado na história do país. A cidade registrou 20 dias seguidos com temperaturas acima de 40°.
E também é norte-americana mais uma marca avassaladora: a região de Death Valley, na Califórnia, o lugar mais quente do mundo, com 54°. Há um pico de internações na região, com dois mortos.
O medo de que seja repetido ou até agravado o quadro de mortes de 2022 é grande.
“No Hemisfério Norte, a população suporta mais o frio, mas é mais suscetível e sofre muito no calor. Já no Brasil estamos mais acostumados a altas temperaturas, somos mais adaptados ao calor, assim como outros países da América do Sul, África e Oceania”, diz o médico Paulo Roberto Lazarini, professor titular de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.
As complicações de saúde são desencadeadas pela forte mudança de temperatura corporal.
O grande problema é o processo de desidratação, com perda rápida de água do corpo, que provoca uma alteração circulatória importante. Com isso, há uma sobrecarga cardíaca, o coração é obrigado a trabalhar com menos sangue e com dificuldades de irrigar todas as partes do corpo.
Pessoas com complicações cardiovasculares enfrentam um processo mais crítico e ficam expostas a outras complicações.
“O aumento de temperatura corporal também facilita a entrada de infecções. O calor pode igualmente atingir o sistema nervoso central na sua função de regular a temperatura do corpo, normal ao redor de 36°C. As consequências podem ser desde confusão mental até a perda de consciência e coma. Todas as reações ficam mais evidentes em idosos e crianças”, alerta Lazarini. “O organismo não consegue fazer um controle da temperatura, com hipertermia e problemas cardiovasculares mais evidentes e maiores chances de óbitos.”
Os cuidados pessoais precisam ser redobrados, porque a onda de altas temperaturas é inevitável. Trata-se de uma força da natureza.
“Por trás do calor escaldante na Europa existe um fenômeno meteorológico, um sistema de alta pressão estacionado no sul do continente”, explica o climatologista Carlos Nobre.
Sem muitas nuvens, o sol aquece o solo, provocando seca e ondas de calor. “Isso sempre existiu”, pontua o cientista, “a questão é que os fenômenos estão se repetindo com mais frequência e mais intensidade em consequência do aquecimento global. Quando chove, chove forte, quando há seca, ela é mais acentuada.”
Nós estamos chutando o sistema climático, brigando com o sistema climático.”
Climatologista Carlos Nobre
No ano passado, a Europa já registrou temperaturas recordes, com mais de 60 mil mortes, com maior ocorrência entre os idosos. “Com o ar muito quente e muito seco, o corpo fica exposto a um estresse térmico”, afirma Nobre. Essa situação atual pode durar dias ou semanas, segundo ele, e a questão está em saber se a situação caótica de 2022 vai se repetir.
Como o calor afeta a saúde
• Desidratação
Perda rápida de água traz mudanças circulatórias que podem causar problemas cardiovasculares, infarto e insuficiência renal aguda.
• Insolação
Excesso de exposição ao sol e ao calor intenso também levam a problemas cardíacos e renais.
• Infecções
Alteração térmica do corpo favorece aparecimento de processos infecciosos, de gastrointestinais a patologias na pele.
• Problemas nasais
Ar seco causa sobrecarga do nariz, com sangramento, rinosinusites e ressecamento das vias, que facilita processos infecciosos.
• Comprometimento do sistema nervoso central
Perda da capacidade de manutenção da temperatura corporal leva a desorientação, inconsciência e até coma.
A resposta de todos os países precisa ser efetiva e rápida. Segundo Nobre, o Brasil é o quinto maior emissor de gases do efeito estufa no planeta, responsáveis pelo aquecimento global, mas responde por apenas 4% de emissões brutas entre os países componentes do G20.
“Cada um tem de fazer a sua parte, e o Brasil tem a possibilidade de redução de até 75% das emissões, porque são decorrentes do desmatamento e do manejo da agricultura. Diferente da China, por exemplo, em que 80% das emissões estão ligadas à geração de energia, à queima de combustíveis fósseis. O País tem condições de promover uma redução rápida das emissões, antes mesmo da China ou dos Estados Unidos. Todos precisam se empenhar.”
Alerta de urgência
Com a perspectiva de um calor forte que deve continuar por semanas e atingir outros pontos da Terra, questões vitais para a Amazônia ganham urgência, como o combate às queimadas, ao desmatamento e ao garimpo ilegal. A presença do Exército na região, iniciada pelo governo Lula no início do ano, devido à crise humanitária dos Yanomamis, ainda é tímida.
Uma intensificação nessa atuação traria mais resultados antes que os efeitos do calor extremo sejam agravantes dos antigos problemas. “Muitas pessoas estão ali cortando as árvores e enxergam apenas madeira, é gente que não sabe o que está se perdendo. Além da madeira, a fauna, a flora e os insumos para a indústria farmacêutica e cosmética”, aponta Ricardo Ribeiro Alves, mestre e doutor em Ciência Florestal.
Para ele, a Amazônia tem que ser vista como um recurso estratégico. “Quando se descobre uma jazida de petróleo, rapidamente o governo vai lá e toma conta. A Amazônia era para ser enxergada da mesma forma. Eu penso que todos os instrumentos possíveis para coibir isso, essa derrubada, essa invasão indiscriminada, o governo tem que utilizar, porque isso tem que ser tido como uma área de interesse estratégico da nação.”
Para Ane Alencar, diretora de Ciências do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam), atuar na redução do desmatamento e na adequação do manejo da agropecuária seriam as duas principais contribuições do Brasil para mitigar o processo de aquecimento global.
“O que pega são as questões ligadas à responsabilização, aplicação de multas, embargos de áreas e produção.” Ela questiona a efetividade dessas ações. “As multas, quanto tempo leva para serem aplicadas? São pagas? Quem tem a produção embargada corre o risco concreto de perdas?”
Para combater efetivamente o desmatamento, Ane defende a criação de operações especiais desenvolvidas pela Polícia Federal, o Ibama e os estados, em um processo de fortalecimento da responsabilização.
Ao mesmo tempo, ela recomenda a concessão de incentivos, com créditos específicos, aos proprietários e produtores, para que mantenham os limites para o desmatamento, promovam a restauração de áreas degradadas e o reflorestamento, além de melhorar as práticas de uso do solo, com rotatividade no abate do gado e das pastagens, entre outras estratégias.
AS MAIORES TEMPERATURAS DA TEMPORADA
EUA 54°
CHINA 52,2°
ITÁLIA 46°
ESPANHA 45,3°
TAILÂNDIA 44,6°
Para além da necessidade de combate militar efetivo e imediato às mazelas da Amazônia, o governo sinalizou nos últimos dias ações de diplomacia e de regulamentação para assumir protagonismo nas questões ambientais.
Nos dias 8 e 9 de agosto, o Brasil abriga uma cúpula de países da região amazônica, que pode incluir Emmanuel Macron, por causa da presença no ecossistema da Guiana Francesa. A intenção do encontro é chegar a uma posição conjunta a ser apresentada na COP28, conferência da ONU para o meio ambiente que será realizada no mês de dezembro, em Dubai, assim como iniciar os preparativos para a COP30, que ocorrerá em Belém, em 2025.
A proposta defendida por Lula é que os governos locais tenham soberania para decisões sobre a floresta, sem pressões internacionais.
Na cúpula de Europa e América Latina, em Bruxelas, Lula disse que a Amazônia abriga 50 milhões de pessoas, 20 milhões delas brasileiras, e que não quer ver a região tratada como santuário ambiental.
“Nós queremos transformar a Amazônia num centro de desenvolvimento, queremos compartilhar a exploração científica com o mundo que queira participar. Nós acreditamos que é possível extrair do ecossistema da Amazônia e da riqueza da biodiversidade.” Para o presidente, o País tem “autoridade moral” na questão ambiental, pela proposta de assumir de forma unilateral e voluntária o compromisso de acabar com o desmatamento até 2030.
Ação do governo
Em agosto, será lançado o Plano de Transição Climática, com o ministro da Economia à frente. Fernando Haddad anunciou que ele será dividido em seis eixos:
1) incentivos econômicos,
2) adensamento tecnológico da indústria nacional,
3) fomento à bioeconomia,
4) apoio à transição energética,
5) cartilha de adaptação às mudanças climáticas,
6) uma nova política para resíduos e economia circular, que inclui saneamento básico.
A ideia é atrair capital privado estimulado pela qualificação de investimentos como net zero, nome dado a ações que tenham comprovadamente ausência total de emissões líquidas de carbono.
O projeto inclui um programa de exportação para produtos da floresta. As ações propostas serão iniciadas no decorrer dos anos de governo Lula. É preciso acelerar essa implantação.
A palavra dos especialistas
Carlos Nobre, climatologista
“O Brasil é quinto maior emissor de gases de efeito estufa no planeta, mas responde por apenas 4% de emissões brutas entre os países componentes do G20. Cada um tem de fazer a sua parte, e o Brasil tem a possibilidade de redução de 75% das emissões, porque são decorrentes do desmatamento e manejo da agricultura. Diferente da China, por exemplo, país em que 80% das emissões estão diretamente ligadas à queima de combustíveis fósseis”
Ane Alencar, diretora De ciências do Ipam
“O que pega são as questões ligadas à responsabilização, aplicação de multas, embargos de áreas e produção. As multas são pagas? Quem tem a produção embargada corre o risco concreto de perdas? O problema está na incapacidade do governo em lidar com as questões da ilegalidade. O crime organizado é responsável pela maior parte do desmatamento ilegal, o que torna quase impossível chegar aos verdadeiros culpados”
Ricardo Ribeiro Alves, doutor em ciência florestal
“Infelizmente, no Brasil, a gente tem visões de curto prazo das coisas. A gente não pensa como questões estratégicas para as futuras gerações. Pensa no que pode explorar agora. Isso talvez seja a grande diferença para países que começam a pensar políticas de longo prazo. Parece que eles conseguem visualizar isso e a gente tem muita dificuldade. Como temos à vontade, não nos preocupamos, mas uma hora pode faltar”