Estudo com primatas ajuda o planeta
Com participação de pesquisadores brasileiros é concluído o mais completo catálogo com DNA de primatas, publicado pela revista Science. Ele ajudará na identificação de doenças e a preservar a biodiversidade
Por Denise Mirás
Em mais um passo no avanço da medicina, a identificação de mutações causadoras de doenças a partir de informações genômicas de primatas, e suas aplicações para a saúde humana, contou com a participação de brasileiros e colaboradores de outros 23 países.
O trabalho resultou em um catálogo com o DNA de 809 indivíduos de 233 espécies de primatas, como o mais completo estudo sobre a diversidade genética e a história evolutiva desse grupo, que inclui macacos, símios, lêmures e humanos.
Os resultados foram destacados em edição especial da revista Science, uma das publicações mais conceituadas do mundo, Assim, com as características encontradas, será possível iniciar a identificação da diversidade que se manifesta há 60 milhões de anos e abrir caminhos para a conservação do planeta.
O brasileiro Jean Boubli, titular de Ecologia Tropical e Conservação da Universidade de Salford, na Inglaterra, liderou a coleta entre os colaboradores do Brasil e informalmente acabou se tornando o coordenador das reuniões e análises dos cientistas, que debateram e analisaram informações a partir das amostras de primatas de florestas tropicais da América, África — com Madagascar em separado — e Ásia.
A MAIOR DIVERSIDADE DA TERRA
Um terço dos estudos publicados partiu de primatas no Brasil
Ele explica que em 2018 foi procurado por Tomás Marquès-Bonet, especialista em genética e professor da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha, para participar de um projeto que já contava com Christian Roos, especialista em primatologia genômica de grandes símios, como chimpanzés, gorilas e orangotangos, e ligado à Universidade de Gottingen, na Alemanha.
O convite partiu da Illumina, empresa líder em sequenciamento de DNA, que cobriria todos os custos de sequenciamento na universidade catalã. O biólogo brasileiro, que soma 30 anos de trabalhos focados em biologia evolutiva e conservação, explica: “Eles detêm os equipamentos e plataformas mais usados no mundo e haviam desenvolvido um algoritmo de Inteligência Artificial chamado de PrimateAI-3D”.
O objetivo da Illumina era detectar mutações no genoma humano que correspondessem a algumas doenças. Porque, quanto mais genomas tivessem de outras espécies, mais acurado seria o algoritmo deles, como assinala Boubli. “E se havia essa motivação da empresa pelo lado da medicina, para os cientistas chamados para o projeto o interesse era pela biologia evolutiva dos primatas.”
Era preciso reunir, porém, as amostras espalhadas por centros de pesquisa, museus e coleções, um trabalho que acabou coordenado por ele. No caso da Amazônia, continua o professor, a rede de colaboração incluiu diversas instituições, como as Universidades Federais do Amazonas e do Pará e o Museu Nacional do Rio de Janeiro, dentre outras.
“No fim, minhas amostras e de meus colaboradores brasileiros corresponderam a quase um terço dos estudos publicados. Daí a importância das nossas expedições multidisciplinares e do financiamento de áreas do governo e externas.”
Para Boubli, o projeto também foi “uma virada de jogo, um primeiro passo para entender nossa biodiversidade e preservar o que temos”.
Contra o desmate
O primatólogo Felipe Ennes Silva, pesquisador da fauna da Amazônia e que também participou do projeto, observa: “Esse esforço global surgiu em um momento importante da pesquisa genômica, com novas tecnologias de sequenciamento do DNA se abrindo a mais aplicações. Com isso é possível identificar características no genoma que são importantes para adaptação diante de alterações em habitats e também quais as espécies mais vulneráveis a ameaças globais, como mudanças climáticas, por exemplo.”
No caso dos primatas brasileiros sequenciados, Ennes explica que as amostras incluem fezes, sangue, e tecidos de diferentes tipos e de acervos do Brasil, Estados Unidos e Europa.
Dessas coleções científicas, fundamentais para o estudo da biodiversidade, Ennes cita a de mamíferos do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) e também outras, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), ao qual é vinculado, e que é uma das unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
“Embora as sequências tenham sido produzidas de espécies já identificadas, é importante salientar que algumas delas foram descritas apenas recentemente, como é o caso do zogue-zogue, de Alta Floresta, na lista das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo em decorrência do desmatamento”, afirma o pesquisador.
Se por um lado há espécies na África, Madagascar e Ásia adaptadas a usar áreas mais abertas, como savanas, no Brasil são 100% arbóreas, dependendo das florestas na Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Caatinga. Da mesma forma, esses diferentes biomas também dependem dos primatas que comem frutos e dispersam sementes pelas fezes.
“No Brasil temos a maior diversidade de primatas do mundo que, em outras palavras, ‘plantam’ florestas”, resume o pesquisador, atestando a necessidade de combater o desmatamento para evitar a perda de uma diversidade única no mundo.