Cultura

A visão original e provocativa de Nabokov sobre Cervantes e seu ‘Dom Quixote’

No concorrido curso que deu na Universidade de Harvard, Vladimir Nabokov abordou o clássico universal 'Dom Quixote de la Mancha'. Finalmente, sua análise e interpretação sobre o personagem de Miguel de Cervantes chega agora ao Brasil

Crédito: Anni Settanta

Vladimir Nabokov: o russo contesta séculos de compreensão sobre 'Dom Quixote', de Miguel de Cervantes (Crédito: Anni Settanta)

Por Felipe Machado

Para os apaixonados por livros, frequentar um curso de literatura na Universidade de Harvard tendo Vladimir Nabokov como professor seria algo imaginável. No período em que lecionou nos EUA, no início dos anos 1950, o autor russo abordou a obra de Franz Kafka, Marcel Proust, James Joyce e Fiódor Dostoiévski, entre outros cânones. Nenhum desses cursos, porém, foi tão concorrido como Lições Sobre Dom Quixote, uma profunda e original análise da obra do espanhol Miguel de Cervantes, autor de um dos principais clássicos universais. Os afortunados alunos que compareceram às classes, no entanto, não serão mais os únicos com acesso ao rico conteúdo do notável catedrático: o texto integral das aulas chega às livrarias em lançamento da editora Fósforo.

“Alguns críticos tentaram provar que Dom Quixote é uma farsa ultrapassada. Outros sustentam que é o maior romance de todos os tempos. O crítico francês Sainte-Beuve o chamou de ‘Bíblia da humanidade’. Não nos deixemos enfeitiçar por esses magos.”
Vladimir Nabokov

“Lembro com grande prazer como dissequei Dom Quixote, um livro cruel e grosseiro, diante de seiscentos alunos, causando imenso horror e embaraço em alguns dos meus colegas mais conservadores”, explicou Nabokov, quando comentou as aulas em uma entrevista.

Seu alvo eram os críticos norte-americanos, que, segundo ele, haviam interpretado a obra de forma errada, transformando-o em um mito excêntrico sobre as aventuras de um cavaleiro louco.

Para o professor, o livro não deveria inspirar o riso, como foi o caso por décadas. “Seu brasão é o da piedade, seu estandarte, a beleza. Ele representa tudo que é gentil, puro, altruísta e corajoso”, afirmou.

“A obra é a evolução da forma épica, os pés da poesia se abrindo para a prosa, um cruzamento fértil entre o monstro imponente e a narrativa agradável. O resultado é um híbrido fecundo, uma nova espécie: o romance europeu”
Vladimir Nabokov

Nabokov via Dom Quixote como um conto de fadas. Ele aponta que o livro é repleto de inconsistências, até sobre a geografia da Espanha. Cervantes, para ele, era um fracassado: um péssimo soldado, mau poeta e autor de peças teatrais medíocres, além de funcionário mal remunerado de uma firma de agricultura. Até que, em 1605, esse improvável criador produziria a primeira parte de Dom Quixote.

Uma das qualidades de Nabokov como professor, se é que seria possível destacar apenas uma, é a maneira como ele contextualiza Cervantes no cenário literário da época. Na linha do tempo, traça o paralelo entre o espanhol e William Shakespeare, que publicara tragédias sobre dois reis loucos, Macbeth e Rei Lear, no mesmo ano em que Cervantes idealizava seu insano cavaleiro.

Pelo jeito, a insanidade e suas consequências entre nobres e plebeus marcou o zeitgeist europeu no início do século 17. A genialidade de Cervantes se fez presente no cruzamento entre o rebuscado formato épico e a narrativa mais leve e informal.

O professor defende que o adjetivo “quixotesco”, algo “em coalisão com a realidade”, deveria passar a ser compreendido como “exageradamente idealista”, uma mudança significativa de interpretação.

“Lembro com grande prazer como dissequei esse livro cruel e grosseiro diante de seiscentos alunos no Memorial Hall, em Harvard, causando imenso horror e embaraço em alguns de meus colegas mais conservadores”
Vladimir Nabokov

Esse é um dos pontos mais controversos da tese do russo, que contesta séculos de compreensão sobre uma das obras mais populares de todos os tempos. Dom Quixote, para Nabokov, é um tratado sobre como o ser humano atribui significados às coisas, sejam elas “ameaçadores” moinhos de vento ou elmos feitos com a bacia de um barbeiro, como no caso do fidalgo.

Antes de sair em suas aventuras, Dom Quixote era Señor Alonso, um tranquilo proprietário de terras. Até que, aos cinquenta anos de idade, mergulhara na leitura de obras inspiradoras e tomara a decisão de se tornar um cavaleiro andante.

Ele não seria, portanto, um louco, mas alguém que conscientemente comete “loucuras”, como ele mesmo descreve para o companheiro Sancho ao longo da história. Ele está, portanto, “brincando” de ser um corajoso guerreiro — um ato de lucidez que suscitou a sensibilidade do professor Nabokov.