Brasil

Uma ministra sob ataque

Nísia Trindade enfrenta a fritura do Centrão e tem a difícil missão de restabelecer a área após a pandemia e o desmonte da gestão Bolsonaro. Em entrevista, ela diz que o grande desafio é o atendimento às demandas dos municípios

Crédito: Wenderson Araújo

Nísia Trindade, ministra da Saúde: "O presidente tem dado sucessivas manifestações de boa avaliação do meu trabalho” (Crédito: Wenderson Araújo)

Por Marcos Strecker, Gabriela Rölke e Samuel Nunes

O governo Lula está completando seis meses. É um prazo curto para fornecer uma visão definitiva de seu terceiro mandato, mas longo o suficiente para avaliar problemas e dificuldades persistentes. A pasta da Saúde, uma das mais importantes da Esplanada, traduz as mazelas que o governo enfrenta. Após garantir um orçamento robusto com a PEC da Transição, esse ministério tem sofrido para se recuperar do governo Bolsonaro, retomar serviços essenciais do SUS e recolocar nos trilhos programas vitais como as campanhas de vacinação. Em meio a essa tarefa, a ministra Nísia Trindade vive um processo de fritura. É bombardeada no Congresso e seu cargo é cobiçado por membros do Centrão.

O ataque é agravado pela debilidade da articulação política do governo. Os parlamentares desejam viabilizar suas emendas na área, uma das melhores para render votos e projeção política e com orçamento de R$ 181,6 bilhões, um dos maiores da União. Sob articulação de Arthur Lira, presidente da Câmara, o PP cobiça o cargo de Nísia.

Parte das dificuldades da ministra está na liberação das emendas que compunham o orçamento secreto e o governo prometeu liberar, apesar de esse mecanismo ter sido declarado inconstitucional pelo STF.

Além disso, em maio, uma portaria do Ministério da Saúde estabeleceu regras para a destinação de emendas parlamentares que irritaram o presidente da Câmara.

Foi o estopim para o Centrão tentar remover a ministra. A portaria priorizava o atendimento à atenção primária e na especializada em emergências, propostas por estados e municípios, quebrando a prática anterior, quando parlamentares tinham liberdade para priorizar redutos e escolher destinação.

Lula e Nísia Trindade em solenidade do Brasil Sorridente, uma das marcas do governo. Abaixo, campanha nas redes pela permanência da ministra (Crédito:Ricardo Stuckert)

Credenciada

Nísia Trindade chegou ao cargo depois de ter presidido a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por quatro anos.

Apesar de não ter formação na área de Saúde, é uma das principais pesquisadoras brasileiras no campo das ciências sociais e comandou a instituição na pandemia, quando expandiu a atuação do órgão vinculado ao Ministério da Saúde.

Driblou o negacionismo de Jair Bolsonaro e fechou acordo internacional com o laboratório AstraZeneca para a produção da vacina contra a Covid-19.

Mas não tem a mesma experiência política ou jogo de cintura de antecessores como Luiz Henrique Mandetta (na breve gestão sob Bolsonaro) ou José Serra (no governo FHC).

Suas credenciais, amplamente reconhecidas pela comunidade científica, não garantiram facilidades, e a ministra é criticada pela demora em atender a emendas propostas por parlamentares.

Dos R$ 9 bilhões para esse fim, apenas R$ 3,3 bilhões foram empenhados até o momento. Há semanas, deputados do Centrão exigem mais espaço na Esplanada e entraram na fritura os ministros do Turismo (Daniela Carneiro), da Casa Civil (Rui Costa) e das Relações Institucionais (Alexandre Padilha). Em todos os casos, reclamações pontuais se transformaram em tempestades que o presidente Lula tem demorado a resolver.

Por não ser filiada a nenhum partido, a pressão sobre Nísia é maior.

Publicamente, Lula tem defendido a manutenção dela no cargo. E se nos corredores do Congresso a situação é delicada (e uma troca poderia atingir Padilha, um dos responsáveis pela indicação da ministra), nas redes sociais houve uma onda de mensagens de apoio a Nísia.

Há, no entanto, espaço para um meio termo, apostam alguns políticos, com a ministra permanecendo no cargo, mas sob ampla engenharia por espaços importantes para o Centrão – e especialmente para Lira.

A recriação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), votada pelo Congresso, pode facilitar a reacomodação, sendo destinada ao PP ou outro partido do Centrão.

Recuperação

O destino do Ministério da Saúde é vital não apenas para o governo, mas para a recuperação da Saúde após o desmanche de Bolsonaro.

Autoridades na área são enfáticas ao apontar as credenciais da ministra e seu papel na reconstrução da área.

“A movimentação do Centrão em relação à ministra representa o pior do Brasil. A ameaça de usar o Ministério como barganha é lamentável e vergonhoso.”
Margareth Dalcolmo, membro titular da Academia Nacional de Medicina e pesquisadora da Fiocruz.

Fico perplexa de ver como algo que envolve um esforço enorme, coletivo, que é a reconstrução da Saúde, pode estar à mercê de uma negociação ou de uma pressão política que é inadmissível”, conclui Margareth Dalcolmo.

Margareth diz que a ministra tem amplo apoio da comunidade acadêmica e de Saúde Pública e comemora a reabertura do diálogo entre o Ministério e os agentes do setor.

Mas ela reconhece que há ainda muito a ser feito. Por exemplo, em relação à imunização. “Estamos com uma taxa da vacina bivalente contra a Covid-19 que não chega a 20%. Está muito baixa.” Se houve um arrefecimento do processo epidêmico, com variantes de menor gravidade em circulação, por outro está sendo difícil a sociedade retomar a confiança no Programa Nacional de Imunizações (PNI), segundo ela.

“O PNI, de 1976, já nasceu vitorioso. A população tinha enorme confiança nas vacinas, mas isso foi contaminado pela retórica oficial do governo anterior e por esses grupos extremamente nocivos alardeando que as vacinas fazem mal”, alerta.

Gonzalo Vecina, médico sanitarista e um dos idealizadores do SUS, alerta: “Se o Centrão tomar o Ministério da Saúde haverá um imenso retrocesso. Estão falando de uns nomes até palatáveis. Um foi secretário daqui, outro foi secretário dali. Mas hoje trata-se de um Ministério em recuperação, porque houve um desastre no governo anterior. Tenho muito medo de uma eventual substituição da Nísia Trindade, porque ela é um quadro técnico e tem também uma preocupação política”.

Ele se diz impressionado pela forma como destruíram o que havia sido feito no Ministério. “Ainda bem que alguns órgãos conseguiram escapar. A própria Fiocruz conseguiu ser preservada, graças à Nísia, que estava no comando da instituição. A Anvisa e a ANS também foram preservadas. Mas, no Ministério da Saúde, foi terra arrasada.”

Déficit na saúde

Além da destruição bolsonarista, a pandemia criou o maior déficit na área desde a criação do SUS, aponta outro experiente gestor da saúde pública. Houve um acúmulo de atendimentos por fazer: consultas, exames, cirurgias, quimioterapia.

Com a mudança de governo, a expectativa era desse déficit ser atacado de forma imediata, mas a tarefa não é fácil. O cidadão, que precisa desses serviços, está nos municípios, onde o Estado não tem conseguido chegar na velocidade esperada.

Então os municípios passam a pressionar seus deputados, o que resulta nesse ambiente de queixa generalizada no Congresso. O problema começou a ser resolvido, afirma o gestor, mas não tão rápido quanto se esperava. Por isso não é possível atribuir a movimentação no Congresso exclusivamente ao “apetite” do Centrão por ministérios.

Para alguns analistas, o governo deveria reconhecer a demora para recuperar os estragos provocados pela gestão anterior, inclusive na vacinação, que foi anunciada como prioridade do novo governo.

A mobilização nacional não está no nível desejado e as prometidas campanhas não vêm ocorrendo a contento. seria preciso orientação correta e trabalho ainda mais intenso para reverter esse quadro.

Especulação

Caso Lula decida trocar Nísia Trindade, o que por enquanto o governo nega enfaticamente, dois nomes têm ganhado terreno. O primeiro é o deputado Luiz Antônio Teixeira Jr., o Doutor Luizinho (PP), hoje na pasta da Saúde no governo de Cláudio Castro, no Rio de Janeiro. É próximo de Lira, mas tem contra si a defesa que fez do governo de Bolsonaro. Ele nega qualquer sondagem.

Sobre a atuação de Nísia, entende que ela ainda está no início do trabalho e precisará de mais algum tempo para colocar em funcionamento todos os planos do governo. “É tudo especulação, não houve nenhum tipo de conversa sobre esse assunto com ninguém”, afirmou.

Outro nome citado é o da médica Ludhmila Hajjar, que chegou a ser cogitada para a pasta por Bolsonaro, o que ela declinou. Ela esteve na equipe de transição de Lula, conta com a simpatia de vários políticos em Brasília e em governos estaduais e municipais.

Sua indicação poderia facilitar o diálogo com parte da oposição. Procurada, preferiu não se posicionar.

Um terceiro nome é o do deputado e ex-ministro da Saúde Ricardo Barros, secretário no governo do Paraná. Mas ele sofre resistência até dentro do próprio partido, o PP, e disse não ter sido procurado para tratar do assunto. Por fora, corre o senador Hiran Gonçalves (PP).

Questionado pela ISTOÉ sobre o destino de Nísia Trindade, o líder do governo na Câmara, José Guimarães, desconversou: “O que eu tenho a ver com a ministra Nísia?”.

Enquanto isso, os gestores e autoridades na área esperam que diminua o ataque especulativo ao cargo da ministra e que ela consiga reproduzir no Ministério a atuação bem-sucedida durante a pandemia.

“A Saúde no País estava destruída”
Entrevista com a ministra da Saúde, Nísia Trindade

O Centrão se queixa da demora da liberação das emendas. Essa reclamação procede?
Até o momento, foram empenhados R$ 5,5 bilhões em emendas individuais. Para dar uma medida, nos seis primeiros meses de 2019, nada havia sido pago. O grande desafio, hoje, é o atendimento a demandas de municípios, sobretudo os que eram atendidos nas emendas de relator, extintas pelo STF. Esses recursos foram distribuídos aos ministérios. Na Saúde, são R$ 3 bilhões. Estamos recepcionando as demandas dos parlamentares para suas bases, e vamos tentar atendê-las. Estamos fazendo tudo dentro de critérios do SUS e com toda a agilidade possível.

Como tem sido sua relação com o Congresso?
Tenho tido uma excelente relação com deputados e senadores de todos os partidos. Desde janeiro, foram quase 280 parlamentares atendidos. Já me reuni com várias bancadas federais. São reuniões muito produtivas, com parlamentares de diferentes partidos defendendo os interesses dos seus estados.

O governo Bolsonaro desacreditou o modelo brasileiro de vacinação. Como reverter isso?
O governo anterior combateu a vacina e se entregou ao negacionismo, e esse discurso infelizmente continua nas redes. É muito triste, porque temos um programa de imunização que vai completar 50 anos e que é exemplar. Conseguimos aprovar a PEC da Transição, ainda antes da posse do presidente Lula e graças à compreensão do Congresso, o que garantiu a recuperação de recursos do Programa Nacional de Imunização, que seriam reduzidos em 70%. Estamos fazendo um planejamento em nível local em todas as regiões do Brasil, que é um país muito desigual, e com diferenças inclusive climáticas, que interferem na sazonalidade das doenças.

A sra. esteve na quarta-feira 28 com o presidente Lula. Ele te tranquilizou?
Não conversamos sobre isso. O presidente tem dado sucessivas manifestações de boa avaliação do trabalho que eu venho conduzindo e das entregas que vêm sendo feitas. Em geral ele cobra sempre mais alguma coisa, o que é normal nos ministérios. Cobra avanços. Sobre a pressão do Centrão, soube pela imprensa das críticas de que a minha pasta não estava entregando, que eu não teria uma boa avaliação. Mas eu não vejo isso. Vejo um forte movimento de apoio. Do presidente, da comunidade da saúde coletiva, dos movimentos sociais, de muitos parlamentares. Não quer dizer que não possa haver críticas, faz parte da democracia, e eu não sou infalível. Mas faço parte de uma equipe, no Ministério da Saúde, que tem trabalhado com correção.

A despeito das pressões do Congresso, a sra. se sente tranquila no cargo?
Na verdade, o que o presidente sempre me fala é: “Você está conduzindo bem o trabalho, você tem feito muitas entregas, vamos reforçar a compreensão da sociedade sobre esse trabalho”. Porque muitas vezes a sociedade não entende muito bem o SUS, o que é responsabilidade do governo federal, o que é responsabilidade dos estados e municípios. E ele sempre me faz sugestões de aperfeiçoamento do trabalho. Ele está muito preocupado com a velocidade das entregas nos ministérios, para que nosso governo possa reconstruir o País, porque o Brasil foi destruído.

“Lula está muito preocupado com a velocidade das entregas nos ministérios”

O Congresso acaba de recriar a Funasa, extinta no início do ano. Os cargos vão ser preenchidos pelos partidos?
A primeira discussão é sobre qual vai ser o desenho para a estrutura da Funasa. Os cargos vêm na sequência. Até o momento, nem o presidente nem nenhuma outra instância do governo me colocou nada sobre isso, nem o Poder Legislativo, sobre a presidência da Funasa.

Indicações políticas para cargos no Ministério da Saúde oferecem algum risco para a qualidade do corpo técnico da pasta?
Indicações políticas em um governo eleito com uma base ampla são mais do que normais. As indicações políticas que eu recebi, e que pude incorporar à equipe, tinham perfil técnico adequado. O secretariado do Ministério tem alguns filiados a partidos políticos, mas nem sei dizer a proporção porque não foi o critério partidário que imperou.

Quais as principais conquistas do Ministério nesses seis primeiros meses?
Restabelecemos a coordenação do SUS junto a estados e municípios. Recuperamos o diálogo e a capacidade efetiva de coordenação. Também retomamos programas de muito êxito que haviam sido desmontados. Reformamos o Farmácia Popular, agora vinculado ao Bolsa Família: seus beneficiários têm acesso gratuito a medicamentos. A lei do Mais Médicos foi aprovada no Congresso. No programa de redução de filas, conseguimos a adesão de todos os estados. No PSF, hoje temos mais de 30 mil equipes. Enfim, é um esforço de reconstrução. Isso não é imediato, não vou dizer que estamos no melhor dos mundos, ainda temos muito o que avançar, mas tenho convicção de que é um excelente começo.