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Destino selado: Bolsonaro inelegível

Mesmo com os direitos políticos cassados após o julgamento histórico no Tribunal Superior Eleitoral, Jair Bolsonaro não estará fora do jogo. Ele pode manter a tentativa de deslegitimar o jogo eleitoral e influir nos próximos pleitos. O bolsonarismo mostrou que a ascensão da direita e a expansão dos evangélicos criou uma nova realidade

Crédito: Marlene Bergamo

Antecipando a derrota, Jair Bolsonaro evitou criticar os ministros, mas desabafou: “É uma injustiça, meu Deus do céu” (Crédito: Marlene Bergamo)

Por Marcos Strecker e Gabriela Rölke

Em uma votação histórica com profundo impacto na vida política nacional, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinaria em julgamento iniciado no dia 22 a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro pelos próximos oito anos. O resultado final ainda estava pendente até a última quinta-feira, quando a sessão foi adiada, mas com veredito certo contra o ex-presidente.

É mais uma reviravolta dramática na trajetória do capitão, que viveu quase 30 anos como figura marginal do baixo clero do Centrão na Câmara e lançou-se como azarão na corrida presidencial em 2018. Sua vitória surpreendente, no entanto, provocou uma polarização extremista e terminou por inviabilizar sua reeleição. O País ainda sofreu uma uma tentativa de quartelada frustrada, no dia 8 de janeiro.

O TSE retomou esse julgamento no dia 27 com o voto do ministro Benedito Gonçalves. Nessa data, o relator da ação, ministro Benedito Gonçalves, votou pela condenação de Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

Bolsonaro e seu candidato a vice em 2022, general Walter Braga Netto, foram alvos de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) movida pelo PDT.

A legenda denunciou na Justiça Eleitoral uma reunião promovida por Bolsonaro, em julho de 2022, na qual o então presidente convocou todo o corpo diplomático estrangeiro em Brasília. Ali, ele proferiu uma série de mentiras sobre as urnas eletrônicas e atacou ministros do Supremo Tribunal Federal, tudo trasmitido ao vivo pela TV Brasil do Alvorada.

O objetivo da reunião era desestabilizar a credibilidade do processo eleitoral. Se condenado, Bolsonaro perderia os direitos políticos e ficaria oito anos inelegível, fora da próxima disputa presidencial, podendo concorrer apenas em 2030.

TSE na quinta-feira, 29: Bolsonaro acusado de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação (Crédito: Sergio Lima / AFP)

Para Benedito Gonçalves, ao atacar, sem provas, o sistema eleitoral, o ex-chefe do Executivo adotou um comportamento “nocivo” para a democracia e “violou ostensivamente” os deveres do cargo de presidente.

Gonçalves, no entanto, votou no dia 27 pela absolvição de Braga Netto. Bolsonaro e seus aliados contavam com o ministro Raúl Araújo, dois dias depois, para um pedido de vista, o que poderia adiar na prática o julgamento para o final de setembro.

Ele é o juiz que deu a polêmica decisão que proibiu manifestações políticas de artistas no Lollapalooza no ano passado, atendendo a um pedido do partido do presidente. Também deu o único voto contra a multa de R$ 22,9 milhões imposta ao PL pelo presidente do TSE, Alexandre de Moraes, após a legenda pedir a anulação de parte dos votos do último pleito.

O desgaste causado por essas decisões pode ter influido na decisão de Araújo de não pedir vista e proferir seu voto, contrariando a torcida bolsonarista no dia 29.

Mas, como previsto, Araújo votou favoravelmente ao ex-presidente. E condenou o uso pelo tribunal da “minuta do golpe”, o documento encontrado pela PF na casa do ex-ministro Anderson Torres que previa a adoção do estado de Defesa no TSE, revertendo a eleição da Lula.

Esse documento havia sido incorporado à ação com voto unânime dos ministros do TSE. E o relator, no seu voto no dia 27, reforçou que o documento tem “estreita correlação” com o caso. Araújo, no entanto, aceitou o argumento da defesa de que não existia “conexão” entre a minuta e a acusação contra o ex-presidente.

Alexandre de Moraes presidiu o julgamento, que teve a relatoria de Benedito Gonçalves (Crédito:Pedro Ladeira)

Maioria

Os ministros Floriano Marques e André Ramos Tavares votaram também pela condenação de Bolsonaro, e Alexandre de Moraes interrompeu às 13h o julgamento, que seria retomado na sexta-feira, 30. Mas já não havia chance de o ex-presidente reverter o placar desfavorável, que estava em 3×1 contra ele, e provavelmente deve se encerrar em 5×2 (o segundo voto a favor de Bolsonaro, todos contavam, seria de Kassio Nunes Marques, ministro do STF indicado pelo capitão).

Moraes e Cármen Lúcia, que pendem pela condenação, votariam na sexta e, mesmo que Nunes Marques, o penúltimo a votar, pedisse vista, isso teria um efeito meramente protelatório, sem alterar o resultado final.

O ex-mandatário já tinha consciência da derrota e a tentativa de descartar a minuta do golpe por seus advogados foi apenas uma manobra processual para tentar remediar um jogo já perdido.

Resta a ele apenas entrar com um recurso no STF contra a corte eleitoral, mas as chances de sucesso são mínimas. Nem mesmo a insinuação feita por seus aliados de entrar em um tribunal internacional teria qualquer efeito prático.

Sua esperança de uma mudança no “humor da sociedade” e na reversão do clima no Judiciário a médio prazo também é pouco provável. Nos últimos dias, como estratégia estabelecida pela sua defesa e pelo PL, Bolsonaro evitou ataques diretos aos ministros do TSE e tentou recalibrar sua participação política reforçando a rotina partidária.

Participou de eventos da legenda no Rio Grande do Sul e de São Paulo. Diante da iminência do veredito, desabafou: “É uma injustiça comigo, meu Deus do céu”. Jogo jogado, era o fim da linha.

Raúl Araújo (à dir.) votou contra a condenação. Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro ao STF, também era contado como voto a seu favor (Crédito: Pedro Ladeira)

A questão agora é saber até que ponto a saída de cena do ex-presidente do jogo eleitoral significará o fim da sua influência.

“O bolsonarismo é anterior a Bolsonaro e vai continuar depois dele, mesmo com o ex-presidente inelegível.”
Emerson Cervi, cientista político da UFPR.

Para Cervi, há hoje no País uma nova direita radical institucionalizada. “A partir de 2018, entrou nas instituições e continua tendo força de mobilização social e de angariar votos”, argumenta. Ele diz que se trata de um movimento conservador reacionário que já existia como movimento difuso movido apenas pela antipolítica, mas que agora ganhou força. “E isso vai continuar.”

Para tentar sobreviver politicamente, Bolsonaro poderá se espelhar em primeiro lugar em seu modelo: o ex-presidente Donald Trump.

Assim como seu pupilo brasileiro, o americano não conseguiu se reeleger, tentou subverter o resultado das urnas espalhando mentiras sobre o processo eleitoral, atacou a Justiça e promoveu um movimento de sedição que custou a vida de cinco pessoas no ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.

Acuado pela Justiça, Trump no entanto conseguiu manter a popularidade e um forte apoio no Partido Republicano e tem chances reais de voltar ao poder em 2024.

A cada novo revés na Justiça, o americano aproveita para se vitimizar e arrecadar mais dinheiro para sua campanha no próximo ano. Nos EUA, a polarização ainda se mantém mesmo com a bonança econômica e com o desemprego em baixas históricas.

Bolsonaro desembarca no aeroporto Santos Dumont (RJ), na quinta-feira, 29: populares gritaram “inelegível” e “golpista” (Crédito:Mauro Pimentel)

Já Bolsonaro pode não conseguir o mesmo suporte político, pois nunca teve fidelidade partidária. O PL, de Valdemar Costa Neto, é o nono partido do ex-presidente. Costa Neto já dava como certo que o capitão perderia os direitos políticos, mas isso não é necessariamente um problema, já que esse líder do Centrão também não deseja ficar refém do bolsonarismo.

Sua maior aposta é usar o carisma e a capacidade de mobilização de Bolsonaro para ampliar o número de prefeitos da legenda no ano que vem.

Para 2026, ele cogita até lançar Michelle Bolsonaro, com apelo junto aos evangélicos e ao eleitorado feminino, que rejeita em grande medida o seu marido. Com isso, o PL poderia manter boa parte da sua bancada no Congresso e o Fundo Partidário gordo conquistado com o bolsonarismo.

“Seria necessário punir Bolsonaro em primeiro lugar por tentativa constante e permanente de golpe de Estado.”
Francisco Carlos Teixeira, historiador e cientista político da UFRJ

Para essa estratégia, Bolsonaro terá que repetir a capacidade de atrair votos para os aliados, como conseguiu fazer na atual Legislatura. Trata-se de algo difícil se ele nem puder concorrer.

Além disso, não necessariamente o ex-presidente conseguirá transferir votos para os prefeitos aliados em 2024. Em 2020, quando era presidente e tinha a máquina pública nas mãos, colheu um resultado pífio nas urnas, fazendo poucos prefeitos.

Além de ser um político famoso pela indisciplina partidária, ele nunca se interessou em formar sucessores. Tem uma forma personalista de encarar a política.

É difícil imaginá-lo percorrendo o País nos próximos ciclos eleitorais para eleger outros nomes ou fortalecer um projeto partidário do qual não será beneficiário imediato. E há as dúvidas sobre a força que conseguiria manter.

O fato de o ex-presidente já ter tirado Flávio da corrida pela prefeitura carioca no próximo ano pode ser um indicativo de que ele teme um naufrágio eleitoral do filho, o que comprometeria ele mesmo.

E o enfraquecimento de Eduardo Bolsonaro em São Paulo em 2022, quando obteve menos da metade dos votos de 2018, perdendo mais de um milhão de eleitores, também demonstra que a mágica do clã pode não se manter.

Estratégias

Além de mirar o exemplo do infortúnio de Trump, Bolsonaro também pode tentar reproduzir a trajetória de Lula, que amargou mais de um ano de prisão após ser condenado na Lava Jato e deu a volta por cima reconquistando os direitos políticos e um terceiro mandato.

Lula evitou indicar um sucessor, fiou-se, pelo menos em público, em uma virada na Justiça e insistiu na sua candidatura de 2018 à Presidência até o limite do prazo legal, finalmente cedendo o posto de presidenciável petista a Fernando Haddad.

Se percorrer esse caminho, Bolsonaro poderá insistir em uma reviravolta jurídica e persistir na sua candidatura própria em 2026 mesmo que ela seja uma impossibilidade legal, apenas para se manter em evidência e conservar sua base de apoio unida.

Novo cenário

Seja qual for a estratégia do capitão, os partidos já se preparam para o novo cenário trazido pela sua condenação.

Os mais lembrados para herdar os votos da direita são os governadores Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, e, acima de todos, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo.

O cientista político Alberto Carlos Almeida, pesquisador do comportamento dos eleitores há anos e autor de A Cabeça do Brasileiro, diz que os governadores saem na frente na bolsa de apostas dos conservadores. “Óbvio que Tarcísio de Freitas é um nome. Mas uma das exigências costumeiras do sistema é que esse governador já tenha sido reeleito, já tenha sido testado e aprovado no cargo que ocupava. É o caso de Zema e Ratinho Júnior, mas não de Tarcísio.”

Para o especialista, há também a questão do cálculo eleitoral. “O que a derrota do Bolsonaro mostrou, entre outras coisas, é que é muito fácil ser reeleito. Bolsonaro teria sido, não fosse a pandemia. Para que Lula não seja reeleito em 2026, é preciso um fato externo negativo muito forte. Se a economia for mediana, ele vai ganhar. Não precisa de uma economia excelente, desde que a inflação não fique fora do controle. Mesmo que o crescimento não seja muito forte.”

Portanto, se Tarcísio estiver fazendo esse cálculo, deve deixar qualquer outro nome disputar no terreno que seria de Bolsonaro e esperar para se candidatar à Presidência quando não puder mais ser reeleito em São Paulo.

Ele só anteciparia o movimento nacional se houvesse um fato externo e ficasse muito claro, com alguma antecedência, que Lula não conseguiria ser reeleito.

A minuta golpista encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres (acima) foi incluída na ação. Abaixo, o ataque de 8 de janeiro, que teria sido um desdobramento (Crédito: Mateus Bonomi )
(Sergio Lima / AFP)

O fatídico encontro com embaixadores

A reunião com os embaixadores não teve apenas efeito na Justiça eleitoral. Esse evento também despertou em 2022 a atenção dos EUA para um possível golpe de Estado. Levou o governo Biden a manifestar publicamente confiança no sistema eletrônico de votação e chamar as instituições democráticas no Brasil de “modelo para as nações do hemisfério e do mundo” logo após a divulgação do resultado do pleito.

Segundo reportagem publicada pelo jornal Financial Times, isso não foi apenas uma declaração protocolar. Os americanos reagiram à ameaça golpista e haviam entrado em contato com militares brasileiros.

Teriam informado que a cooperação na área de segurança poderia ser interrompida, afetando acordos, treinamentos e operações conjuntas.

O governo americano teria também intercedido para que Taiwan, país que é grande fornecedor de semicondutores, assegurasse o fornecimento de chips para as urnas brasileiras.

No fim, foi mais um cálculo errado de Bolsonaro. Ao invés de angariar apoio no exterior para sua quartelada golpista, ele conseguiu mobilizar a comunidade internacional em defesa da democracia no Brasil.

Se politicamente seu destino parece selado, falta a ele prestar contas em todas as investigações que o cercam. Há mais 15 ações no TSE e cerca de 600 na Justiça comum.

Francisco Carlos Teixeira, historiador e cientista político da UFRJ, alerta que o atual julgamento pode não abarcar o “conjunto da obra” do ex-presidente, ainda que o TSE tenha contextualizado sua esparrela com diplomatas no contexto mais amplo de uma tentativa golpista.

Uma condenação baseada apenas em uma causa lateral, como a fala aos embaixadores, não teria efeito pedagógico para a população. Para isso, seria necessário punir Bolsonaro em primeiro lugar por tentativa constante e permanente de golpe de Estado, diz o especialista, “mas também por atentado à saúde pública, prevaricação, recusa de ajuda durante a pandemia, especialmente no caso de Manaus, e genocídio dos Yanomami”.

“Se fosse uma condenação nesse sentido, haveria um impacto pedagógico grande, inclusive no sentido de que seria muito difícil haver uma contra-narrativa”, afirma.

A história dirá. Mas uma página importante foi virada com o julgamento do TSE. Bolsonaro, afinal, não conseguirá novamente desacreditar o generoso sistema democrático que permitiu sua ascensão, para que depois ele tentasse miná-lo por dentro.

O herdeiro?

De perfil técnico e ex-ministro da Infraestrutura, o carioca Tarcísio de Freitas foi escolhido por Bolsonaro para concorrer ao governo de São Paulo no ano passado sem ter vivência eleitoral nem projeção no estado.

A aposta deu certo e ele se tornou o maior vitorioso entre os pupilos do capitão. Tarcísio se beneficiou da implosão do PSDB.

Sua imagem de tocador de obras, militar, conservador e “bolsonarista não radical” caiu no gosto da população. Pesa contra ele a inexperiência em cargos políticos. Por isso (e também por temperamento próprio), Freitas tem mantido um perfil “low profile” e evita se envolver em polêmicas e embates com os adversários.

Tarcísio de Freitas evita se expor para não irritar bolsonaristas (Crédito:Marina Uezima )

O governador tem mostrado jogo de cintura.

* Aproximou-se pragmaticamente do governo Lula para resolver os interesses do estado e até endossou pautas de costume não conservadoras, o que irritou os bolsonaristas mais ideológicos.

* Também acelera pautas como as privatizações. Ele não se coloca como alternativa para a Presidência, pelo menos no curto prazo, e divulga que seu projeto é fazer uma boa gestão e tentar a reeleição.

* Pode estar agindo assim por cálculo político. Se ele se colocasse na corrida, poderia atrair fogo amigo e também virar um alvo prematuro de todos os outros pretendentes ao Planalto.

É cedo para dizer se o governador se tornará o herdeiro do bolsonarismo, já que este representa um movimento social complexo e em evolução, mas Tarcísio parece ter as melhores credenciais entre os políticos surgidos na esteira do capitão para se firmar no establishment político e atrair as forças de centro, longe da polarização esquerda-direita.