entrevista: Marcos Mendes

Entrevista

Marcos Mendes, Economista

A nova regra fiscal é uma aposta de alto risco

Wenderson Araujo

A nova regra fiscal é uma aposta de alto risco

Editora Três
Edição 30/06/2023 - nº 2787

Por Mirela Luiz

Doutor em economia, servidor licenciado da Consultoria Legislativa do Senado, com passagens pelo Banco Central e Tesouro Nacional, Marcos Mendes foi assessor especial do Ministério da Fazenda entre 2016 e 2018, ajudando a formatar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos e a reforma da Previdência. Professor e pesquisador associado do Insper e considerado atualmente um dos economistas mais influentes do País, Mendes demonstra preocupação com o texto do novo arcabouço fiscal e afirma que há algumas inconsistências bastante problemáticas no projeto, mostrando que ele não é capaz de estabilizar a dívida pública e que não se conseguirá isso só acabando com subsídio tributário, “jabutis” e lacunas da legislação fiscal.

Será preciso um aumento muito forte de carga tributária, o que é algo bastante prejudicial ao crescimento econômico. “Todas as projeções que conheço do mercado e de acadêmicos que fazem conta direito mostram que, mesmo que todas as metas fiscais sejam cumpridas, a dívida subirá de 73% do PIB hoje para mais de 85% em 2030”, diz ele, em entrevista à ISTOÉ.

Como um dos idealizadores do teto de gastos, qual é a sua visão sobre o texto da nova regra fiscal que passou pelo Senado e que agora volta para a Câmara? Houve avanço ou retrocesso?
A nova regra é uma aposta. Ela permite que o governo aumente a despesa todos os anos, e diz que ele tem que ir atrás de receita para fechar a conta. Estão apostando que vão conseguir essa receita. E se não conseguirem? Vão fechar a conta com mais dívida pública ou vão deixar a inflação crescer, para corroer a dívida e o valor real das despesas. Qualquer um dos caminhos tomados, com sucesso ou fracasso do arcabouço fiscal, representa menos crescimento econômico. Se conseguirem aumentar a receita, a carga tributária mais alta atrapalha o crescimento. Se não conseguirem a receita, o aumento da dívida e a inflação também atrapalharão o crescimento, além de bagunçarem a economia. O detalhe é que a receita necessária para fechar a conta é muito grande. No ano que vem será preciso arrecadar R$ 230 bilhões a mais para cumprir a meta de resultado primário. A receita líquida do governo federal, que este ano deverá ser de 17,8% do PIB, precisará chegar a 20,1% do PIB em 2027. Isso equivale a um aumento de 70% na arrecadação do imposto de renda que fica com a União, depois dos repasses aos estados e municípios. É muito dinheiro. Não vai ser fechando brechas na legislação tributária e acabando com benefícios fiscais que se conseguirá essa receita. Vai ser preciso aumentar bastante a carga.

“A Fazenda se fortaleceu dentro do Governo. Foi anunciado um programa sem sentido de subsídio à compra de carros e Haddad foi bem-sucedido em encolher o tamanho do programa” (Crédito:Ton Molina)

Quais são os principais problemas do novo arcabouço?
Além da enorme exigência de receitas, temos o fato de que mesmo tudo dando certo, a dívida pública não vai parar de crescer. O objetivo fundamental de uma regra fiscal é não deixar a relação dívida/PIB disparar. Todas as projeções que conheço, do mercado e de acadêmicos que fazem conta direito, mostram que mesmo que todas as metas fiscais sejam cumpridas, a dívida subirá de 73% do PIB hoje para mais de 85% em 2030. Se o governo não cumprir as metas fixadas, a dívida passa de 90% do PIB. São “mares nunca dantes navegados” por uma economia de renda média. É um risco muito grande. Eu falei antes que a nova regra fiscal é uma aposta. Acrescento agora: uma aposta de alto risco.

O senhor acredita que as alterações aprovadas pelo Senado no texto do novo arcabouço fiscal abrem precedente para que outras áreas da Educação e da Saúde, por exemplo, pleiteiem ficar fora do limite?
Foi aberta uma exceção para despesas em ciência e tecnologia, o que não faz o menor sentido. É uma despesa meritória? Sim, mas muitas outras também o são. Não se decide inclusão ou exclusão de despesa de uma regra fiscal por ela ser meritória ou não. As preferências das pessoas são diferentes. Por que vai atender a ordem de prioridades de uns e não atender outros? Se isso for mantido, muitas outras exceções serão aprovadas, e aí teremos uma morte precoce da regra. Eu acredito que a Câmara derrubará essa parte. Mas manterá a exceção ao Fundo do Distrito Federal e ao Fundo da Educação Básica (Fundeb). A regra seria mais forte se não houvesse a exceção.

As metas de resultado primário sugeridas pelo Poder Executivo no arcabouço fiscal são factíveis?
Como falei anteriormente, só serão atingidas com um aumento maciço de receita. Um aperitivo para o que vai ocorrer a partir de 2024 já está sendo visto em 2023. Quando o governo anunciou a regra no começo do ano, falou que a meta de resultado primário para 2023 seria um déficit de 0,5% do PIB. Agora já esqueceu a promessa e fala em déficit de 1% do PIB. E deve fechar na casa de 1,2% do PIB.

O Banco Central já afirmou que não há uma relação mecânica entre a aprovação do arcabouço fiscal e o juro básico no País. O que o senhor espera da condução da política monetária após a aprovação do texto?
A política monetária não pode viver de ilusões. Não é porque se aprovou uma regra no Congresso, com promessa de equilíbrio fiscal, que o Banco Central vai reagir de imediato. De tudo o que falei até agora, deve ter ficado claro que há inúmeras interrogações sobre a capacidade desta regra fiscal de entregar o mínimo de previsibilidade e estabilidade fiscal. A política monetária tem que se guiar por indicadores de expectativas de inflação, analisando o comportamento do chamado núcleo (o conjunto de bens de menor volatilidade de preços), o grau de difusão da inflação (qual o percentual de produtos da cesta que está aumentado de preços), o cenário de preços internacionais, a política de juros nos EUA e Europa, os possíveis choques cambiais. Não se opera política monetária com base em sinalizações políticas e intenções. Uma coisa tem que ficar clara: política monetária contracionista para baixar inflação machuca a economia. Ninguém gosta. Mas deixar a inflação crescer é pior, porque aí a próxima rodada de combate à inflação vai ser ainda mais dolorosa, pois vai ter que lidar com uma inflação mais alta e expectativas deterioradas. Por isso, é preciso que o serviço seja feito direito e não fique pela metade. Estamos com uma política de desinflação bem encaminhada. É preciso todo cuidado na decisão quanto ao momento e ritmo de redução dos juros. É como tomar antibiótico. Tem efeitos colaterais negativos, mas é necessário para estancar a infecção bacteriana. Se você para o tratamento tão logo os sintomas da doença diminuam, e não toma o remédio durante os sete dias, como manda a bula, a infecção volta pior.

O senhor lança dúvidas sobre o arcabouço fiscal, mas o mercado parece ter gostado. As taxas de juros de longo prazo e o dólar estão caindo, a bolsa está subindo, há um clima de otimismo. Por que a divergência?
Nós estamos passando por um período positivo de curto prazo. Em parte, porque o resto do mundo está ajudando e, em parte, porque o governo diminuiu a intensidade dos seus erros. No cenário externo, temos a parada na elevação dos juros nos EUA, o que permite que a diferença entre os juros deles e o nosso deixe de diminuir, incentivando a entrada de capitais no Brasil. O dólar está se desvalorizando no mundo todo, o que inclui o real, e traz como efeito a redução na pressão sobre a inflação de bens importados. Na agricultura, a safra foi muito boa, o que elevou nossas receitas de exportações e gerou um crescimento do PIB surpreendente neste começo de ano. No front interno, o governo diminuiu o assédio que estava fazendo ao Banco Central e parou de falar em aumentar a meta de inflação. Isso abrandou a tensão no mercado. Até poucos meses atrás veiculava-se a ideia de que se os juros não caíssem de imediato haveria uma crise de crédito generalizada. Ninguém fala mais disso. A perspectiva de aprovação do arcabouço fiscal é uma sinalização de que as contas públicas não vão estourar de imediato. Algum esforço de ajuste será feito, ainda que insuficiente. Ganhou-se um prazo de um ou dois anos para continuar a fazer negócios. E isso é suficiente para animar o mercado, que naturalmente tem foco no curto prazo. O Ministério da Fazenda se fortaleceu dentro do Governo. Foi anunciado um programa sem sentido de subsídio à compra de carros e o ministro Haddad foi bem-sucedido em encolher o tamanho do programa, minimizando o prejuízo. De quebra, ainda conseguiu uma receita extra, voltando a tributar o diesel. O Congresso, por sua vez, limitou os arroubos antirreformistas do Governo, que começou o ano querendo reverter a reforma do saneamento básico, a lei das estatais, a reforma trabalhista e previdenciária. Tudo isso foi mandado para a geladeira. Esse momento positivo é uma grande oportunidade para o governo ajustar a sua política econômica. Mas pode ser também um incentivo à complacência, com o governo interpretando os benefícios de um ambiente externo favorável, como se fosse resultado de suas políticas.

“A política monetária não pode viver de ilusões. Não é porque se aprovou uma regra no Congresso, com promessa de equilíbrio fiscal, que o Banco Central vai reagir de imediato” (Na foto, o presidente do BC, Roberto Campos Neto) (Crédito:Sergio Lima / AFP)

A agenda que o governo está começando a implantar é preocupante?
Sim. É um tiro nas condições necessárias ao crescimento econômico: o equilíbrio fiscal, a estabilidade monetária e a produtividade. A lista é grande: política inconsistente de aumento do salário mínimo, múltiplas intervenções do BNDES no mercado de crédito, Petrobras reprimindo preços de combustíveis e fazendo investimentos arriscados e pouco rentáveis, novo PAC e seus investimentos mal planejados, escolha de diretores do BC com postura leniente em relação à inflação, aumento de subsídios tributários. Precisamos lembrar, ainda, do papel dúbio do Congresso. Ele tem feito um bom trabalho em barrar contrarreformas tentadas pelo governo. Mas isso só ocorre nos temas mais visíveis, em que a opinião pública faz pressão sobre os parlamentares. No dia a dia do Congresso, contudo, há inúmeras propostas ruins, que atendem a interesses de grupos de pressão, como aumento de desonerações tributárias, subsídios, ampliação de programas públicos sem avaliação, congelamento de tarifas de serviços públicos. Esses projetos vão sendo aprovados aos poucos, em função da fragilidade do governo para formar maioria no Congresso. Muitas vezes até com a concordância do governo. O que eu vejo, em resumo, é que temos um momento bom na economia, mas teremos a introdução gradual de políticas equivocadas ao longo do mandato. Isso não vai estragar o bom momento de uma hora para outra. Essas más políticas vão envenenar o ambiente econômico lentamente, ao longo dos próximos anos – como a história do sapo, que vai sendo cozido à medida que a temperatura da água da panela sobe, e ele nem percebe.