Brasil

Sob o império da lei

O Superior Tribunal de Justiça cria jurisprudência e vem acertadamente revogando prisões e condenações que não cumpram aquilo que é determinado pela Constituição e demais códigos. É o triunfo do Estado de Direito sobre o arbítrio e a exceção, uma vez que no País está-se prendendo e fazendo busca e apreensão sem ordem judicial

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STJ: jurisprudência baseada em princípios republicanos, no direito à autodeterminação e nas garantias fundamentais (Crédito: Divulgação)

Por Por Antonio Carlos Prado

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem tomando decisões às vezes surpreendentes, mas jamais extravagantes ou excepcionais, para fazer valer o Estado de Direito naquilo que é o maior desafio a demonstrar a vigência desse ordenamento jurídico em uma sociedade: o combate a crimes e criminosos estritamente de acordo com os preceitos legais. O Estado de Direito não pode existir pela metade, ou ele vigora por inteiro e para toda a população com as garantias fundamentais previstas no artigo 5º da Constituição Brasileira, ou torna-se mera retórica de instrumentalização política.

Mede-se a sua solidez e eficiência pela forma que o Estado (legitimamente detentor do monopólio da repressão) protege por meio do Poder Judiciário o cidadão que não transgride.

Mas mede-se tal eficiência, também, pela maneira que as autoridades policiais e judiciais contêm aqueles que infringem as leis – ou seja, é imprescindível combater o infrator, porém dentro da própria lei. Atitude diferente é especiosa no campo jurídico. E escancara as portas a regimes ditatoriais.

Compreende-se a perplexidade gerada em algumas ocasiões diante da jurisprudência rigorosamente garantista firmada no STJ em um País no qual a Constituição muitas vezes adormece no fundo da gaveta, mas tal rigor é essencial à consolidação do próprio império das leis.

Ou seja: não se pode combater o crime passando-se ao largo da legislação, sob risco de se formar um moto-contínuo de ilicitudes.

Não resta dúvida de que o caso mais impactante foi a decisão do ministro Sebastião Reis Júnior, que concedeu liberdade a um homem condenado em São Paulo a dez anos de prisão e apontado como integrante de facão criminosa. Errou o ministro? Abra-se a Constituição Brasileira, abraça-se o Código de Processo Penal, abra-se o Código Penal. A resposta é não, o ministro Sebastião Reis Júnior não errou.

Ele acertou porque a abordagem da Polícia Militar a tal homem deu-se tendo como base somente a subjetividade de policiais que o consideraram nervoso diante da aproximação da viatura.

Vale argumentar: mas a partir dessa abordagem prendeu-se um homem perigoso, e, com ele, apreenderam-se drogas! Por que soltá-lo? Pois bem, vale igualmente retorquir: é vedada, pelas legislação constitucional e infraconstitucional, a abordagem policial de uma pessoa apenas porque o agente do Estado a considerou com medo. Como o processo começou ao arrepio da lei, a condenação, por força da mesma lei, cai por terra.

Rogério Schietti, ministro do STJ: “No mundo real há fortes razões para que suspeitos inocentes tenham receio de abrir mão de seu direito ao silêncio” (Crédito:Divulgação)

Assim como o abordado é infrator, poderia não sê-lo – e se lembrem de que demonstração de nervosismo é fato que se tornou banal em um País que é líder mundial em ansiedade. “Nos termos da sólida jurisprudência dessa Corte, a percepção do nervosismo do averiguado por parte de agentes públicos é ditada de excesso de subjetivismo, não caracterizando fundada suspeita para fins de busca pessoal, medida invasiva (…)”, escreveu com sabedoria Reis Júnior.

É fato histórico que a democracia constitucional é o mais salutar regime político-administrativo porque permite que diferentes interpretações convivam civilizadamente, ainda que em circunstâncias tensionadas.

Um ponto, no entanto, é irrefutável e tem de ser consensual: jamais a hermenêutica poderá dar-se fora do contorno legal – sobretudo em um Brasil no qual já se propôs, não faz muito tempo, a validação de provas colhidas de forma ilícita.

O Congresso, colocando as ideias no lugar, brecou essa intenção arbitrária.

Sebastião Reis Júnior, ministro do STJ: “A percepção de nervosismo do averiguado por parte de agentes públicos é ditada de excesso de subjetivismo” (Crédito:Divulgação)

São inúmeras as decisões do STJ anulando acertadamente prisões e condenações que estão se dando de forma abusiva, algo que não se via desde o final da ditadura militar.

Explica-se, aqui, um importante ponto que está acontecendo: a polícia tem, por exemplo, mandado de prisão contra uma pessoa. Deve prendê-la, isso é óbvio.

Só que, a partir daí, há agentes (não todos) que revistam a casa do preso. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa — um fruto podre (a busca e apreensão sem mandado) macula a atitude legítima e legal da prisão (no terreno jurídico, um fruto podre apodrece a árvore).

Em outras ocasiões tem ocorrido o contrário. Há o mandado de busca e apreensão, não o de prisão, mas a polícia prende sem ordem judicial.

É lícita a entrada de um agente público em um domicílio, sem mandado, diante de forte e fundamentada (por escrito) suspeita de flagrante crime. Ao que se assiste nos últimos tempos choca-se com o Devido Processo Legal.

Age bem o STJ, portanto, endossando a tese consagrada, no mundo democrático, do processualista italiano Franco Cordero (1928-2020): é abominável o primado da hipótese sobre os fatos.

Seguindo esse princípio, o ministro do STJ Rogério Schietti absolveu um homem condenado em segunda instância, uma vez que sua detenção deveu-se ao acaso de ele estar em uma região de tráfico de drogas e ter-se agachado atrás de um carro ao ver a polícia se aproximar.

Na delegacia, ele valeu-se do direito constitucional de manter-se em silêncio. Em juízo declarou-se inocente da acusação de tráfico, foi absolvido em primeiro grau de jurisdição e condenado em segundo. Entendeu o STJ que sua condenação foi em decorrência de ele ter permanecido em silêncio em dependências policiais.

O magistrado Schietti viu nisso clara violação do Código de Processo Penal. “Uma ida ao mundo real traz fortes razões para que suspeitos inocentes tenham fundado receio em acabar em maus lençóis ao abrir mão de seu direito ao silêncio”.

Schietti, em uma frase, dá uma aula de Estado de Direito para todo o Brasil: a ânsia em se produzir confissões muitas vezes as produz falsas. (Os nomes de presos e condenados estão preservados justamente porque tiveram suas detenções ou penas anuladas).

Franco Cordero (1928-2020) (Crédito:Divulgação)

A liberdade enquanto regra

Franco Cordero (1928-2020) nasceu na Itália e foi um dos melhores processualistas de todos os tempos. Tornou-se conhecido internacionalmente como o “papa do processo penal”.

Ao seu profundo conhecimento teórico juntava-se a defesa intransigente da democracia. É de sua autoria uma das mais famosas frases condenando prisões e condenações arbitrárias o arbítrio: “É abominável o primado da hipótese sobre os fatos”.