Christian Dunker entrevista

Entrevista

Christian Dunker, Psicanalista e professor

Hoje a gente suporta bem mais o sofrimento

Andre Lessa

Hoje a gente suporta bem mais o sofrimento

Editora Três
Edição 23/06/2023 - nº 2786

Por Thales de Menezes

Aos 57 anos, Christian Ingo Lenz Dunker faz atendimento clínico num charmoso sobrado no bairro paulistano Paraíso, dá aulas no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, mantém uma produção de artigos na revista Cult e no Blog da Boitempo Editorial, e ainda alimenta o Blog do Dunker e seu canal no YouTube. Ele leva tão a sério a missão de falar de psicologia para leigos que também arranja tempo para escrever livros que frequentam as listas de mais vendidos.

Seu reconhecimento como escritor inclui ter na estante um Jabuti para chamar de seu. Ele ganhou o maior prêmio da literatura brasileira em 2012, na categoria Psicologia e Psicanálise, com Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica.

Em entrevista à ISTOÉ, Dunker fala do aumento da discussão sobre saúde mental, da relação das pessoas com ídolos em tempos de redes sociais e das más condições de apoio a estudantes que sofrem com a onda de ataques violentos nas escolas.

Ele explica como o sofrimento foi agregado ao cotidiano do trabalho nas décadas recentes.

Aumentou muito a discussão sobre a saúde mental. Estamos sofrendo mais ou o debate sobre o tema aflora em maior intensidade?
É um processo global. A partir dos anos 1970, houve uma mudança na política do enfrentamento do sofrimento na relação com o trabalho. Para os liberais, você precisava proteger o trabalhador do sofrimento, daí a ergonomia, a vinculação, uma relação de proteção a longo prazo, pensões, benefícios. Porque o trabalhador era parte de seu capital. Era difícil substituir, principalmente um trabalhador mais qualificado. O que o neoliberalismo descobre? O contrário disso. Se você criar técnicas de produção do sofrimento no trabalho, as pessoas desempenham mais. Se eu disser que vou demitir 10% dos funcionários da empresa no final do ano, independente do balanço, o que acontece com os outros? Vão ficar com medo e vão produzir mais. Posso dar outros exemplos, como manejo de marketing, de RH, de políticas de bônus, que, no fundo, traduzem que a arte de tirar mais é a arte de fazer sofrer mais. A partir de 1973, a gente teve uma modificação no código global de reconhecimento do que é um transtorno mental. Você mandava o mesmo paciente para os Estados Unidos, para a Inglaterra ou para a Itália, e você tinha três diagnósticos divergentes. Qual é a solução? Vamos construir uma espécie de análogo da doença. Ele se chama transtorno, e não doença. E tem como condição a existência estatística. Não há definição etiológica. Vamos chamar de depressão essa lista aqui, que o paciente vai “ticar”. Se tiver oito entre esses 13 fatores, como diminuição de libido, rebaixamento do sentimento de si, humor entristecido, perda da capacidade de satisfação, entre outros, a gente vai chamar isso de depressão. A causa não é discutida na obtenção do diagnóstico

“Tem um momento em que a vida pública do Neymar começa a se apossar dele. O que você fez a internet não esquece” (Crédito:Divulgação)

O que mudou com essa metodologia?
Em 50 anos foram conhecidas mais de 250 novas doenças. Nas décadas de 1970 e 1980 foram descobertas medicações extremamente potentes, e com baixo efeito colateral, como Prozac e Zoloft, as drogas da felicidade. E daí você vai para Ciallis, Viagra… Sem o Viagra, você dá uma. Com o Viagra, você dá três. Por que não tomar? Se você tomar Ritalina, tira oito na prova. O outro, sem Ritalina, tira seis. A ideia de recompor o que foi perdido é substituída pela ideia de superar limites. Hoje a gente suporta muito mais o sofrimento na esfera do trabalho. E nesse momento temos a introdução de uma nova forma de linguagem, que é a internet. Estamos diante de uma coisa revolucionária e, como em toda revolução, a gente não sabe os efeitos. Eu e você, adultos, não somos nativos digitais. Não temos a mínima ideia do que é ser uma criança que nasce com tablet, não sabemos os efeitos sobre uma adolescente que passa cinco ou seis horas seguidas nas redes. Podemos levar 40 ou 50 anos para saber ao certo. Pode ser que não sejam tão graves, mas os primeiros indícios não são bons.

Falando em adolescentes grudados nas redes por horas, como analisar a necessidade de seguir a movimentação dos ídolos, de vibrar com o sucesso deles?
As pessoas começam a se inquirir como acontece esse fenômeno da individualização, do sucesso, como alguém consegue se destacar. Como conseguir o reconhecimento dos outros? Como se tornar notável? A questão me lembra um pouco a situação do final do século XIX até a década de 1920, quando as pessoas ricas tinham um grande enigma sobre o que tornava alguém rico. Estava sendo formado um sistema de bolsa de valores, investimentos, créditos, e as pessoas não entendiam nada sobre isso. Então você entregava seu dinheiro na expectativa mágica que iria acontecer o melhor. Você rezava para isso. E isso culminou, entre outras coisas, no desastre de 1929, que dá origem a um conceito econômico e psicológico, que é a depressão, a Grande Depressão. A gente está vivendo algo parecido, com influenciadores, artistas improváveis, políticos improváveis. Por que essa pessoa se notabilizou? Como ela conseguiu monetizar seu reconhecimento? Ninguém sabe. Nem os algoritmos sabem.

Pessoas como Anitta e Neymar extrapolam sua atuação na música ou no futebol para dominar as redes sociais. A estratégia deles é ocupar todos os espaços, estar todos os dias na vida das pessoas, não?
Exatamente isso que você está falando. No fundo, o fenômeno Anitta fala que não basta ser um grande músico, todo mundo já percebeu isso. Você ter talento, ter um dote, isso é apenas uma condição, uma ferramenta que você tem que ter, é como falar inglês. Daí você depende de outras coisas. Você tem que entender como funciona o poder. Eu tenho que estar nas redes sociais, mas em associação com outras figuras ascendentes, poderosas, e preciso apresentar-me como uma trajetória narrativa, coerente, que não tem grandes hiatos, talvez tropeços aqui e ali. Essa construção tornou-se parte de sua vida profissional, parte de sua capacidade de sonhar, de traduzir desejos em formas concretas de ação.

Por que alguns nomes, como Neymar, chegam ao topo da adoração e aí passam a ser atacados por haters?
Eu escrevi um pouco sobre esse fenômeno. Quando eu me vinculo a uma figura como essa, não é como antigamente, como quando eu comprava um disco e escutava em casa. Eu, cotidianamente, invisto cliques naquela pessoa, e tenho noção disso, que o sucesso que ela está galgando também depende de mim. Assim, sou uma espécie de investidor, porque, na medida em que aquela pessoa vai crescendo, vou junto, eu me identifico. Chega um momento em que a vida construída, a vida pública do Neymar, começa a se apossar dele, que não pode postar algo diferente do que já postou. Muda o olhar dele, que quer dar uma guinada, mas o algoritmo não deixa, porque aquilo que você fez a internet não esquece. O personagem começa a subornar o ator. Os haters são aqueles que desejam sacar seu capital digital de volta. Eu investi em você e agora vou mostrar, inclusive a mim mesmo, que posso retirar isso e te colocar para baixo. E aí vem outros processos psicológicos, como a satisfação que acompanha o ódio.

“Quatro anos de um governo dizendo que o aluno vai para a universidade para fumar maconha e fazer balbúrdia?” (Crédito:Maiakovski)

O Brasil tem um combate efetivo aos transtornos mentais em pessoas sem recursos financeiros para tratamento?
A Constituição em vigor previu o SUS, mas sem indicar como ele seria financiado, principalmente no “Brasil profundo”. Em 2001, veio a Lei Paulo Delgado, que é a nossa reforma psiquiátrica. Mudou a abordagem, não mais manicomial, agora sem encarcerar as pessoas, não baseada na força e nas internações compulsórias. Isso foi tardio no Brasil, e um dos motivos é a ditadura militar, com a colaboração estreita e oficial da psiquiatria com a tortura. A lei previu os Centros de Atenção Psicossocial, os Caps, mas, 20 anos depois, a mesma imprevisão orçamentária do SUS atacou nossa reforma. Há falta de profissionais, e, quando não tem o especialista, você opta pelo remédio, que é mais barato. São transformados em centros de distribuição de medicação, receitada por cardiologistas, endocrinologistas e gente de outras especialidades. É um sucateamento.

Com episódios recorrentes de violência nas escolas, faltam psicólogos para atender os alunos?
Houve um processo brutal de inclusão que a gente conseguiu fazer. Muito tardio. Acabou com as classes especiais, aumentou a diversidade e todo mundo vem para a classe: o autista, aquele que tem dificuldade sensorial, aquele que tem dificuldade de movimentação. Mas cadê a legislação dizendo que esse aluno precisa de um acompanhante terapêutico? Quem paga por isso? É preciso mais psicólogos nas escolas. As crianças vão continuar com dificuldade para passar de ano. Aí acham uma solução: classe com aprovação automática! Não estamos enfrentando o problema, e os conflitos na escola vão aumentando quando você deixa de fazer isso. Nesse cenário, depois de ter colocado todo mundo na escola, tem que qualificar. Aí entra um presidente que faz discurso eleitoral e prática de governo na linha “a escola é um lugar perigoso”. Lá tem mamadeira de piroca, tem professor que doutrina, que pode transformar alunos em pessoas trans e fazer com que os filhos briguem com os pais. E na escola, bem no meio desse país de milícias, está o inimigo público número um, que é o professor de História, um sujeito com o qual você tem que tomar todos os cuidados. E, se o aluno conseguir passar por esse lugar problemático, vai acabar em outro, onde as pessoas fumam maconha e fazem balbúrdia, que é a universidade. Quatro anos de um sujeito dizendo isso, que ao mesmo tempo defende que solução para conflitos é ter armas? Defendendo escolas militares e religiosas? Foi criada uma intimidação nas escolas. E vamos para as estatísticas. Entre 2013 e 2022, você tem 20 ataques às escolas. Desses, sete em 2022, ano eleitoral.

Recursos como metaverso e óculos de realidade aumentada são maneiras para adaptar o mundo à pessoa, ao contrário de o indivíduo se adaptar ao mundo?
Vou falar daquilo que eu chamei de cultura de condomínio. Diante de um conflito, você levanta um muro e torna o outro invisível. O outro, violento, passa a fazer parte da sua fantasia, e você aumenta a segurança, ou você sofre narcisicamente dentro de sua bolha. A bolha digital? Não, antes dela você já vivia em Alphaville, numa relação com o outro que tem muro, porrada e invisibilidade. Uma bolha física. Isso leva a gente a perder duas experiências importantes. Uma é a intimidade, a chance de você conversar com alguém de forma não anônima. É algo que foi atacado pelo condomínio e pela bolha digital. A outra perda é a comunalidade. Vemos a desativação das movimentações sociais, da iniciação política, que poderiam estar, por exemplo, no movimento sindical. A experiência de estar junto, fazendo política e transformação social, sumiu! Ou eu altero a realidade bruta, com carro blindado, subindo muro e comprando arma para me defender, ou eu modifico a paisagem mental. Eu bebo, fumo, cheiro ou crio um estado de entorpecimento digital. É uma resposta ao conflito real que não deve existir.