El Niño: prepare-se para viver o ano mais quente (e talvez catastrófico) da História
A formação de um novo El Niño, mais intenso do que os anteriores, vai elevar a temperatura das águas do oceano Pacífico e acelerar nos próximos meses os efeitos do aquecimento global, criando cenários catastróficos no planeta
Por Thales de Menezes e Denise Mirás
O ano de 2023 já se configurava como um período ameaçador ao meio ambiente. As mudanças climáticas apresentam um quadro alarmante de degelo nos polos, calor extremo na Europa, inundações na Ásia e queimadas nas Américas, como os incêndios florestais no Canadá que espalharam uma impressionante nuvem laranja de poluição sobre Nova York e todo o nordeste dos Estados Unidos. Mas esse cenário conseguiu ganhar proporções ainda maiores de risco ao planeta e seus habitantes.
No último dia 8, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica norte-americana (NOAA) confirmou a formação do El Niño, o fenômeno meteorológico recorrente que é marcado por um aquecimento acima da média no oceano Pacífico, notadamente na área equatorial.
Ele muda a circulação dos chamados ventos alísios, que normalmente se deslocam de leste a oeste carregando umidade e empurrando águas mais quentes das Américas para a Ásia e a Oceania.
O El Niño, que surge em intervalos de dois a sete anos, traz recordes de altas temperaturas e tem efeitos em todo o globo.
No Brasil, além do aumento no calor, o clima na região Norte fica muito mais seco e cresce o número de queimadas na Amazônia, enquanto o Sul do País é castigado com chuvas intensas, provocando deslizamentos e inundações.
Clima de ponta-cabeça
Michelle L’Heureux, que comanda a pesquisa sobre El Niño na NOAA, deixou de lado o caráter sisudo da instituição para ressaltar um grande aumento de eventos extremos nos próximos meses, com o impacto inevitável nas mudanças climáticas.
Segundo a pesquisadora, o fenômeno deve ter efeitos ainda maiores do que em suas aparições anteriores. As estimativas de um El Niño forte, capaz de elevar em muito, a temperatura global, ficam em torno de 60%, com grande potencial de danos, mas existe uma possibilidade de 25% da constatação de um Super El Niño, o que traria aumento de temperatura suficiente para colocar de ponta-cabeça o clima habitual da Terra.
O ano de 2022 completou a década mais quente desde o início desse tipo de aferição, no final do século XIX. No período, a Cidade do Kwait, com três milhões de moradores, registrou a mais alta temperatura numa área densamente povoada: 53,2°C, enquanto o ponto de maior calor na Terra foi o Vale da Morte, deserto na Califórnia (EUA), justificando seu nome com 57°C nos termômetros.
Pelo menos 300 milhões de pessoas enfrentaram temperaturas extremas, superiores a 40°C, e tudo indica que o período entre 2023 e 2027 irá superar esses índices, segundo previsão da Organização Meteorológica Mundial (OMM).
Sem ainda ter terminado o primeiro semestre, em 2023 o planeta já viu os incêndios florestais devastarem quase quatro milhões de hectares no Canadá, inundações sem precedentes na Tailândia, em Bangladesh e na Índia, com 35 mil mortos, e uma seca recorde na Europa, com os piores efeitos sentidos na França e na Espanha. com temperaturas superiores a 40°C.
El Niño, um fenômeno impiedoso
A formação do El Niño é detectada entre abril e junho, mas é de outubro a fevereiro que seus efeitos são mais inclementes no Brasil, porque entra no período do verão, ao contrário da Europa, que só é menos afetada porque estará no inverno.
Mas mesmo durante o ano inteiro, devido às sequelas do avanço do aquecimento global, ganham proporções maiores os danos que já passam a fazer parte do cotidiano climático do País, como as queimadas na Amazônia ou as chuvas capazes de matar no Sudeste e no Sul.
Depois da tragédia ambiental em fevereiro, no litoral norte paulista, com 65 mortos, a região de São Sebastião apresenta agora novas chuvas intensas desde a segunda-feira (12), novamente trazendo um clima de pânico à sofrida população local e incertezas econômicas ao futuro dos municípios da área.
Na Amazônia, o impressionante levantamento do instituto MapBiomas, que aponta 21 árvores derrubadas por segundo em 2022, terá esses números de devastação acelerados nesta temporada.
“Teremos uma seca um pouco mais pronunciada na Amazônia e no período que chamamos de ‘inverno amazônico’ também choverá pouco, como acontece em anos de El Niño. Então o período seguinte de seca, no verão amazônico de 2024, provavelmente também será muito quente, e levará a mais queimadas.”
Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM (Instituto de Pesquisa da Amazônia)
Segundo a pesquisadora, a paisagem fica mais ‘inflamável’. “Por isso é muito importante conhecer o manejo integrado de fogo. É uma política que está em processo no Senado, e que é fundamental para ordenar seu uso. Com queimadas controladas e queimadas prescritas, com ambientes adaptados para reduzir quantidades de material combustível. Isso fará com que os incêndios diminuam, porque as pessoas serão informadas do melhor período para queimar, onde queimar e se podem queimar.”
Ela também alerta que fumaça e fuligem sentidas em Nova York ocorrem todo ano em centros urbanos e mesmo em regiões rurais da Amazônia, afetando populações que sofrem com problemas respiratórios – e é preciso olhar também para isso.
Pelas projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), braço da ONU, os eventos naturais tendem a piorar.
Thelma Krug, pesquisadora com atuação na área de Ciências da Terra e candidata pelo Brasil à presidência do IPCC no segundo semestre, observa que, quanto maior o aquecimento, maior a quantidade de eventos extremos.
“Há o que chamamos de eventos compostos, como de seca prolongada somada a dias muito quentes – o que chamamos de fire wheather (temporada de fogo) – e que já vemos com mais freqüência. O que era ruim ficou pior.”
Thelma Krug, pesquisadora com atuação na área de Ciências da Terra
Ela considera importante o projeto que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, agora no Senado, da qual participou da elaboração em 2018 “e que conseguimos desengavetar”, já tendo sido aprovado pela Câmara.
“São regras de limpeza de áreas mais expostas, por exemplo, para evitar que a queimada se expanda. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade já aplica algumas das técnicas, mas que não são aceitas de imediato, porque essa área que é limpa também perde em biodiversidade. Assim, ficamos entre o risco maior: fazer ou não fazer. Esses manejos não são fáceis, nem baratos. Daí a necessidade de planejamento.”
A savanização da Amazônia
Para o climatologista Carlos Nobre, um dos nomes de referência no estudo da Floresta Amazônica, a probabilidade do fenômeno El Niño atuar com mais impacto neste ano está na faixa entre 60% e 66% e o aquecimento global “tem tudo a ver” com essa alteração: “Está induzindo a mais ocorrências com essa, de maior intensidade. E o mesmo ocorre com os furacões, que se tornam mais frequentes e com possibilidade de se apresentarem mais fortes”.
A mudança no ecossistema da Amazônia, que passa por uma savanização – um processo que vai do Norte do País em direção ao cerrado, no Centro-Oeste –, também pode se acentuar com a chegada do El Niño, “em setembro, outubro, novembro”, com a região se tornando ainda mais seca – e mais sujeita a queimadas.
“Tem sido um enorme desafio zerar o desmatamento, principalmente pelo uso do fogo. É preciso criar um projeto maior de restauração florestal. Isso tem de ser feito para ontem.”
Climatologista Carlos Nobre
Se esse objetivo pudesse ser alcançado até 2030, a floresta secundária ainda levaria 30 anos para crescer.
Sobre a Europa, que desde o ano passado se ressente com temperaturas de 40 graus e incêndios florestais de proporções gigantescas, Nobre diz que não será tão afetada pelo El Niño, porque o hemisfério norte já estará entrando pelo inverno.
“O impacto é mesmo sobre os EUA, Indonésia e maior ainda sobre a América do Sul”, observa. Porque, além do calor mais intenso nessa faixa equatorial, chuvas mais fortes deverão atingir o Sul e Sudeste de Brasil, Paraguai e Uruguai.
Para os cientistas da Organização Meteorológica Mundial, combater todas as chances de incêndio por ação humana na Amazônia é vital no período de El Niño, porque as condições climáticas trabalham contra a prevenção de queimadas.
Segundo o pesquisador Hans Groenring, “o El Niño é poderoso, muito, mas vale a pena pensar que ele na verdade ‘turbina’ os problemas que já estão naturalmente aparecendo nos ecossistemas. Ele é, basicamente, um acelerador de eventos ruins. Ele faz as mudanças climáticas progredirem sem controle.”
Do degelo a inundações, um rastro de destruição
Conforme relatório da OMM, a onda de calor gerada pelo El Niño tem influência em muitos danos sérios ao ambiente, como o degelo no extremo do globo, a alternância de seca e inundação em diversas áreas e a ação de ventos destruidores.
A entidade destaca que La Niña, fenômeno que se alterna com o El Niño e produz redução de temperatura além dos padrões normais, não tem a mesma ação forte nas condições climáticas. Sua última manifestação, iniciada no final de 2020 e dissipada no começo deste ano, não impediu que nesse período o mundo experimentasse seu ciclo mais quente.
A comunidade científica esperava uma reação maior de La Niña junto ao degelo nos polos, mas isso não foi observado. O continente Ártico caminha para se tornar completamente líquido até 2035. E a situação na Antártica também se agrava.
Vice-presidente do Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica (SCAR), o glaciologista Jefferson Cardia Simões diz que existem relações entre o El Niño e a extensão do mar congelado, mas ainda não são claras quanto a acelerar seu derretimento no verão e o quanto essa área poderia ser “diminuída”.
“De toda forma, lembro que o El Niño é um fenômeno cíclico”, observa. “Neste ano, o oceano Austral pode ficar mais quente, com gelo marinho sendo derretido, e no ano que vem se recuperar.”
Mas os sinais de aquecimento do oceano Austral já são claros, afirma. E também aumenta o derretimento de gelo na península Antártica e ilhas ao redor, com o esverdeamento da superfície, coberta de gramíneas e musgos. E a vida marinha é afetada.
“Podemos imaginar um futuro onde o fogo estará mais presente em nossas vidas.”
Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa da Amazônia)
Um El Niño mais persistente compromete as águas oceânicas mais frias e salgadas. Esses volumes profundos são essenciais na circulação oceânica global, carregando nutrientes vitais para a fauna marinha, mas também transportando a poluição de carbono causada pelo homem ao fundo do mar, onde pode estacionar por séculos.
Segundo estudos de cientistas britânicos, houve uma diminuição de 20% desse volume de águas frias nos últimos 30 anos. O que já é o suficiente para afetar várias espécies marinhas. E, com o El Niño forte, pode ter essa degradação acelerada.
É grande o risco de o dia voltar a virar noite
O dia 19 de agosto de 2019 trouxe tensão aos paulistanos. Por volta das 15h, o céu começou a escurecer. Em menos de uma hora, o dia virou noite. Na verdade, uma noite muito mais escura do que o normal.
Sem estrelas no céu e com a maior parte da habitual iluminação urbana totalmente desligada. A escuridão foi causada pela fumaça de queimadas da região Amazônica. Em partículas pequenas e bem agrupadas, essa nuvem de sujeira viajou até o litoral de São Paulo.
Um ano depois, em 18 de setembro de 2020, a capital paulista foi coberta novamente por uma nuvem intensa, dessa vez em um tom mais alaranjado, semelhante ao fenômeno ocorrido em Nova York. O cenário se repetiu pela chegada da fumaça de incêndios florestais, naquele ano muito presentes na região Centro-Oeste.
Pequenos focos de chuva caíram na capital e a água colhida pelos moradores era de tom cinza escuro. O Instituto de Química da USP identificou nas amostras a presença de reteno, uma substância proveniente da queima de biomassa e considerada um marcador irrefutável de queimadas.
As chances de um dia de escuridão poluidora são enormes neste ano e certamente no próximo, se um Super El Nino der as caras. Calor elevado, seca e ventos revertidos para o sentido de Oeste para o Leste sobre a América do Sul, vão criar um caminho acolhedor para a sujeira provocada pelas queimadas.