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Como Mauro Cid operava o cofre do planalto

Novos diálogos mostram que o caixa paralelo funcionava com dinheiro vivo na sede do Executivo e evidenciam a participação de Vanderlei Cardoso de Barros, ligado a empresa que teve contrato com a Codevasf

Crédito: Alexandre Cassiano

O ex-ajudante de ordens de Bolsoaro, Mauro Cid: caixa paralelo e minuta golpista (Crédito: Alexandre Cassiano)

Por Marcos Strecker e Gabriela Rölke

Novas mensagens obtidas por ISTOÉ jogam luz sobre detalhes do caixa paralelo que abastecia as contas pessoais do clã Bolsonaro. O esquema já era conhecido desde que a Polícia Federal quebrou o sigilo do celular do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e apurou que ele dava orientações a assessoras de Michelle Bolsonaro para que despesas da ex-primeira-dama fossem pagas em dinheiro vivo. Segundo a PF, a administração de Mauro Cid das contas do presidente, a provável existência de um cofre com recursos da Ajudância de Ordens e a utilização de depósitos em espécie e de forma fracionada são agravantes, representando uma forma de dificultar a identificação de quem repassou os valores. A suspeita é de desvio de recursos públicos, que podem ter sido utilizados para gastos pessoais do clã Bolsonaro.

As novas informações mostram que parte do dinheiro para o pagamento de contas era guardado num cofre na Ajudância de Ordens do Palácio do Planalto. Há menções sobre dinheiro “no cofre” (em 5 de março de 2021) e sobre “pegar o dinheiro no cofre” (em 16 de agosto de 2021).

Mesmo assim, funcionários do governo Lula não confirmam a existência desse cofre na Ajudância de Ordens e alegam que o espaço está em reformas. Nas mensagens, também fica mais claro o papel de um personagem que carregava dinheiro vivo no esquema: Vanderlei Cardoso de Barros.

Em uma mensagem de 9 de junho de 2021, uma auxiliar de Michelle pede a Mauro Cid dinheiro para pagamento de exames da primeira-dama, e cita que Vanderlei poderia pegar pessoalmente a quantia (R$ 295). Em 23 de agosto de 2021, a assistente da ex-primeira-dama Cíntia Nogueira pede um depósito de R$ 3 mil, e indica que Vanderlei poderia buscar a quantia.

As mensagens citam vários militares que auxiliavam a Presidência. Giselle dos Santos Carneiro da Silva é Primeiro-Sargento do Exército. Esteve lotada no cargo de Assistente da Assessoria Especial do presidente. Em setembro de 2022, foi designada para atuar no Departamento de Gestão da Secretaria-Executiva do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), então sob o comando do general Augusto Heleno. Em abril de 2022, foi agraciada com a Medalha da Vitória, honraria entregue para quem “participou de conflitos internacionais, integrou missões de paz, prestou serviços relevantes ou apoiou o Ministério da Defesa no cumprimento de suas missões constitucionais”. O ato foi assinado pelo então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

A Madeireira Cedro do Líbano participava de licitações do governo federal e teve contrato com a Codevasf (Crédito:Divulgação)

Osmar Crivelatti é segundo-tenente do Exército. Integra o estafe de oito assessores a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente: desde janeiro, atua como assistente na Diretoria de Gestão de Pessoas da Secretaria Especial de Administração, subordinada à Secretaria-Geral da Presidência. É um dos dois militares responsáveis pelo transporte e armazenamento dos mais de 8 mil presentes recebidos pelo ex-mandatário e que foram despachados para a fazenda de Nelson Piquet, em Brasília.

Já outra ex-auxiliar de Michelle, Cíntia Borba Nogueira Côrtes, é civil. É graduada em Administração de Empresas e atuava na Diretoria de Apoio às Residências Oficiais (Diaro). Era ocupante de um cargo comissionado, isto é, de confiança. De acordo com seu currículo, disponível na Secretaria-Geral da Presidência, atuava no assessoramento à primeira-dama em eventos oficiais e audiências e também em “assuntos pessoais diversos”.

Vanderlei Cardoso de Barros não era funcionário do Planalto, mas ainda assim era um dos operadores do vaivém de dinheiro vivo para os pagamentos da primeira-dama. É marido de Zelia do Carmo Soares de Barros e pai de Nayara Raissa Soares de Barros Bitencourt, respectivamente sócia-administradora e sócia da Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais para Construção Ltda., localizada em Goiânia (GO).

Essa empresa chamou a atenção dos investigadores por ter um contrato com a Codevasf, estatal cercada de escândalos, e por ter participado de licitações nessa companhia e no governo federal sem relação com sua atividade primária. A Cedro do Líbano, segundo as apurações, também abasteceu o esquema.

Um auxiliar de Mauro Cid, o Segundo-Sargento Luis Marcos dos Reis, preso na operação Venire (sobre a fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro), recebeu repasses dessa empresa.

Foram pelo menos R$ 25 mil. As investigações não apontaram nenhum vínculo entre Reis, a Cedro do Líbano e seus sócios que justificasse essa movimentação. Ao receber os valores, ele os sacava em um caixa eletrônico. Fez três depósitos para pagar gastos no cartão de crédito de Michelle, além de 12 depósitos em dinheiro na conta da tia dela.

CPMI convoca CID

Mauro Cid centralizava todas as movimentações. Ele está preso no Batalhão de Polícia do Exército desde a Operação Venire e é investigado em vários inquéritos. A PF apurou sua participação no vazamento em uma live do ex-presidente de informações sigilosas sobre o suposto ataque hacker ao TSE, ação que levou à apreensão de seu celular.

Também é investigado pela tentativa de retirar ilegalmente joias que o ex-mandatário recebeu do governo da Arábia Saudita, retidas no Aeroporto de Guarulhos pela Receita Federal. É suspeito ainda de incitação ao crime por participar de outra live em que Bolsonaro relacionava as vacinas contra a Covid à Aids.

A CMPI dos Atos Antidemocráticos deve aumentar os dissabores do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. A comissão aprovou na terça-feira, 13, a convocação de Mauro Cid para esclarecer sua eventual participação nos atos golpistas de 8 de janeiro, fato que já é apurado em um outro inquérito da PF.

A situação dele havia se complicado ainda mais após os investigadores descobrirem em seu celular uma minuta para a decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), junto a documentos que estavam em mensagens trocadas com Luis Marcos dos Reis. A GLO é uma operação militar, prevista em lei, que dá poderes excepcionais aos militares e é decretada quando há perturbação da ordem pública, mas estava sendo instrumentalizada pelo entorno de Bolsonaro para impedir a posse de Lula, vencedor da eleição.

Por conta disso, Cid foi chamado a depor na PF no dia 6. Para o ministro Alexandre de Moraes, do STF, que autorizou essa oitiva, essas mensagens caracterizam um “suporte jurídico e legal para a execução de um golpe de Estado”, conforme noticiou “O Globo”.

Assim, além da “rachadinha palaciana”, Cid virou um personagem central para a investigação sobre a sucessão de eventos que culminaram na intentona de 8 de janeiro, pois o conteúdo do seu celular mostra movimentações para reverter o resultado do pleito.

Em mensagens interceptadas pela PF, ele trocou informações com o ex-major do Exército Ailton Barros, também preso na Operação Venire. Barros queria incitar grupos contra o resultado das urnas.

Mensagens de Barros com um coronel Élcio, que seria o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, mostram que eles tentaram convencer membros do Alto-Comando do Exército a aderir a um plano golpista, citando o então comandante de Operações Especiais (COpEsp), que seria o militar com “tropa na mão”. Os dois se mostram decepcionados com o comandante do Exército na ocasião, general Marco Antônio Freire Gomes, que estaria, segundo eles, “com medo das consequências”.

Além de Mauro Cid, a CPMI dos Atos Antidemocráticos decidiu ouvir o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que foi preso após os ataques à sede dos Três Poderes. Na casa de Torres foi encontrada a minuta de um decreto instaurando Estado de Defesa na sede do TSE, dando poderes a militares para a investigação de casos de “abuso de poder” e “suspeição de medidas ilegais” por parte da presidência da Corte.

O escrutínio, segundo a minuta, seria de uma “comissão de Regularidade Eleitoral” presidida pelo Ministério da Defesa, que ainda indicaria oito de seus 17 membros. Trata-se de uma verdadeira “minuta do golpe”, segundo analistas, com o objetivo de anular o resultado das eleições.

Torres alegou em depoimento que desconhecia esse documento inconstitucional, encontrado em um armário durante uma busca e apreensão em sua casa dois dias após o 8 de janeiro. Afirmou ainda que ele seria descartado e que se tratava de “lixo”, “loucura” e “folclore”.

Já a Procuradoria-Geral da República sustenta que o documento não aparentava que seria descartado e estava “muito bem guardado” em uma pasta oficial do governo federal, junto a pertences pessoais. Tudo indica que a movimentação golpista incluía tanto o Estado de Defesa como a decretação da GLO.

Cerco se fecha

Para a relatora da CPMI dos Atos Antidemocráticos, senadora Eliziane Gama (PSD), “Anderson Torres e Mauro Cid são os dois nomes que têm uma relação muito direta com os fatos que se iniciaram no pós-eleição, de 30 de outubro até 8 de janeiro”.

Todos esses episódios estão em investigação pela PF e agora estarão na mira da CPMI. A comissão, que tem prazo de validade e objetivos definidos (investigar os atos golpistas), não deve se debruçar sobre a contabilidade paralela revelada no celular de Mauro Cid, mas poderá desvendar novas informações, que podem vir também do celular de Bolsonaro apreendido na Operação Venire.

O avanço das investigações e a confirmação de que a CPMI saiu do controle dos bolsonaristas irritou o ex-presidente e seus aliados na comissão. O cerco se fecha sobre o caixa paralelo e também sobre a movimentação golpista.