entrevista delegado federal Alexandre Saraiva

Entrevista

Alexandre Saraiva, Delegado da Polícia Federal

A madeira ilegal da Amazônia virou um negócio bilionário

Bruno Britto

A madeira ilegal da Amazônia virou um negócio bilionário

Editora Três
Edição 16/06/2023 - nº 2785

Por Gabriela Rölke

O delegado federal Alexandre Saraiva atuou por dez anos na Amazônia até ser defenestrado do comando da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas, em 2021, após entrar em rota de colisão com o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Saraiva havia provocado a ira de Salles com a deflagração da Operação Handroanthus, responsável pela maior apreensão de madeira nativa ilegal da história – foram mais de 200 mil metros cúbicos de toras.

Na ocasião, o ministro defendeu as empresas responsáveis pela extração das árvores. Nesta entrevista à ISTOÉ, o delegado diz que esse tipo de interferência foi uma constante durante o governo Bolsonaro e garante que até então nunca tinha visto nada parecido.

Fala sobre a importância do trabalho do indigenista Bruno Pereira na região, e diz que as mortes dele e do jornalista britânico Dom Philips, no ano passado, poderiam ter sido evitadas se o Estado estivesse comprometido com a preservação da floresta.

Saraiva elogia a presença de Marina Silva no governo Lula, mas lembra que a preservação da Amazônia é responsabilidade também da sociedade civil organizada.

Como o sr. avalia a recente movimentação do Congresso em relação às pautas ambientais?
Já era esperado que não haveria trégua para o governo Lula por parte de um Congresso retrógrado, que não tem compromisso com as pautas sociais e muito menos com as questões ambientais. Me preocupam o caso do marco temporal e, especialmente, a situação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que se pretende que seja retirado do Ministério do Meio Ambiente.

Por que razão essas são suas principais preocupações?
O marco temporal vai fragilizar procedimentos já em andamento na Funai de homologação de territórios indígenas. Por sua vez, o CAR é gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro, e não faz sentido nenhum que, com esse nome, essa divisão não esteja sob a gerência do Ministério do Meio Ambiente.

Sobre o embate com o ex-ministro Ricardo Salles: “Se você não está batendo de frente com o demônio é porque está andando na mesma direção que ele. Não me arrependo de nada” (Crédito: Dida Sampaio)

Qual a importância da Marina Silva na pasta do Meio Ambiente?
A presença dela no governo é uma espécie de garantia para a sociedade brasileira e para a comunidade internacional de que o meio ambiente será levado a sério. Em sua outra passagem pela pasta do Meio Ambiente, ela se posicionou claramente a favor do combate ao crime. Uma conduta bem diferente daquela realizada quase 20 anos depois, quando um ministro fez o contrário e defendeu os criminosos que devastavam a Amazônia.

O sr. está falando do Ricardo Salles?
Sim, estou falando do Ricardo Salles. É nítido que avançamos. Nós tínhamos Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente e agora temos Marina Silva. Isso não é pouca coisa.

Como foi sua experiência atuando na Amazônia e quais foram os principais desafios que o sr. enfrentou nos últimos anos?
Cheguei à região em 2011, com a ideia de que o que destrói a Amazônia é a produção agropecuária. Mas percebi que a história não é bem essa: a dinâmica mudou. Nós temos a grilagem de terras, a exploração ilegal da madeira e as fraudes nos financiamentos rurais como as grandes molas econômicas da destruição da Amazônia hoje.

A Amazônia também enfrenta problemas com a mineração e o tráfico de drogas. Como a PF trabalhou para enfrentar esses crimes?
Priorizamos o combate ao crime ambiental, porque percebemos que esse tipo de ocorrência estava sendo promovido por uma organização criminosa. Não era algo realizado de forma esporádica e acidental por algumas pessoas. Era uma ação coordenada, muito bem sustentada política e até judicialmente, e que rendia bilhões de dólares. A Interpol calcula que a madeira ilegal movimenta US$ 153 bilhões por ano. Tráfico de drogas, madeira ilegal, garimpo ilegal, pesca ilegal, grilagem de terras, fraudes nos financiamentos rurais, estava tudo misturado numa holding criminosa.

Há tentáculos dessa organização também em instituições públicas?
Certamente, nos estados e também na esfera federal. A LC 140/2012 transferiu da União para os estados a maior parte da competência para legislar, regulamentar e licenciar o desmatamento ou qualquer outro empreendimento ambiental. Os estados então estão envolvidos nos crimes ambientais. Em todos os lugares por onde passei foi assim: Roraima, Maranhão, Amazonas e Pará. Por isso que eu digo que madeira documentada não é sinônimo de madeira de origem lícita.

A PF deflagrou, em 2020, a Operação Handroanthus. Qual foi o resultado dessa operação?
Houve uma apreensão de 226 mil metros cúbicos de madeira, a maior do Brasil. Conseguimos aquela apreensão a partir de uma nova abordagem, que envolveu ciência, imagens de satélite. É possível passar com 1 quilo de ouro escondido, talvez. Mas não com uma balsa com 3 mil metros cúbicos de madeira. Criamos metodologias para estrangular a extração ilegal de madeira. Em pontos-chave das hidrovias, colocamos embarcações de grande porte da PF para fiscalizar, como fizemos nos portos também. O mercado internacional de madeira nos últimos 50 anos era dominado pelo sudeste asiático, mas diante de uma exploração irracional, eles começaram a fornecer cada vez menos madeira para o mercado internacional, e isso aumentou a pressão sobre a madeira da Amazônia. Por isso se tornou tão tentador retirar a madeira da floresta amazônica e exportar. Virou um negócio bilionário.

A extração ilegal da madeira é hoje o principal vilão do desmatamento da Amazônia?
O agronegócio cede aos madeireiros todo o seu suporte político. A extração da madeira dá o primeiro empurrão. Depois, se desmata tudo e a terra é grilada. Aí vem o agronegócio e coloca ali meia dúzia de cabeças de gado. O grande lance é usar essa terra para empréstimo agrícola. Não planto nada, uso só para pegar empréstimo, ninguém vai olhar. Também não vou pagar. Se o banco me executar, o máximo que eu perco é uma terra que nunca foi minha.

A PF tem efetivo para o combate a esse tipo crime?
Sim. Não é preciso quantidade de policiais. O mais importante é policial bem-treinado, é inteligência, é ciência. A gente tem efetivo.

E isso está sendo feito?
A gente estava fazendo, daí nos deram aquela rasteira, e acho que agora se voltou a fazer. Mas não vamos sair dessa situação da noite para o dia, infelizmente. A polícia é parte da solução, mas há outras instituições que precisam trabalhar junto com a polícia, inclusive a sociedade civil organizada. As pessoas precisam parar de comprar madeira nativa da Amazônia. Chega de comprar maçaranduba, ipê e angelim. Vamos comprar eucalipto, pinus e teca. Uma madeira da Amazônia leva de 200 a 1,4 mil anos para se formar, e tem muito mais utilidade para a humanidade como árvore, lá na floresta, cumprindo sua função ecológica, do que na sala da nossa casa, como uma mesa, ou como deck de piscina. Precisamos parar de utilizar madeira da Amazônia como paramos de usar peles de animais silvestres.

Sobre a madeira apreendida, houve a inserção de hastes de metal nas toras para atrapalhar eventual processamento em madeireiras, certo?
O objetivo não era apenas atrapalhar, era inviabilizar o processamento da madeira. Sempre me incomodou que a gente fazia as apreensões e não conseguia a logística para retirar. Essa madeira, então, simplesmente desaparecia. Eu teria preferido que a madeira da Handroanthus tivesse sido utilizada para infraestrutura, na construção de pontes ou casas populares, mas o Exército não topou. Então, o jeito era destruir o material. Já tentamos leilão dessa madeira também, mas pouca gente se interessava, já que as apreensões costumam acontecer em regiões inóspitas. E os próprios madeireiros, por interposta pessoa, arrematavam a carga, e legalizavam o que era ilegal.

O Estado brasileiro facilitou crimes ambientais durante a gestão do ex-presidente Bolsonaro?
Quando um ministro de Estado, que tinha conhecimento das ilegalidades, vai ao local da operação e questiona o trabalho da PF, e quando o presidente, sabendo disso, não toma nenhuma atitude para a imediata demissão desse ministro, ele se posiciona ao lado de quem protegeu os criminosos.

Então o ex-presidente tem responsabilidade por essa destruição?
Sem sombra de dúvida. Hoje eu posso falar isso, porque ele não é mais presidente e não é mais meu superior hierárquico. Antes eu não podia falar. Fui alvo de oito procedimentos disciplinares, fui suspenso por três dias por causa de uma entrevista sobre a Amazônia ao Programa Roda Viva, da TV Cultura.

Antes da intervenção do Ricardo Salles, o sr. já tinha passado por algo parecido em seu trabalho como delegado da PF?
No governo Bolsonaro isso foi uma constante; mas antes disso, não conheço nenhum delegado da PF que tenha sido orientado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.

O bolsonarismo, de alguma forma, influenciou algum setor da PF?
O policial federal vem da sociedade brasileira, e a sociedade brasileira tem uma parcela que apoia as ideias de Bolsonaro. O policial não vem de marte.

Valeu a pena ter entrado em rota de colisão com o então ministro Ricardo Salles?
Se você não está batendo de frente com o demônio é porque está andando na mesma direção que ele. Não me arrependo de nada, faria tudo de novo. Aliás, tentaria fazer ainda melhor.

Sobre a gestão do ex-presidente Bolsonaro: “Quando um ministro, que tinha conhecimento das ilegalidades, questiona o trabalho da PF, e quando o presidente, sabendo disso, não o demite, ele fica do lado dos criminosos” (Crédito:Mateus Bonomi)

Como o sr. acredita que se dará daqui para a frente o trabalho de proteção da Amazônia e do Meio Ambiente?
Temos que entender que o legado desta geração para as futuras é a preservação da floresta amazônica. Não vai ser só polícia, Ministério Público, Justiça: precisamos das universidades, da sociedade organizada, mas, sobretudo, de ciência e de tecnologia. É preciso também garantir que as pessoas daquela região tenham condições de vida digna, porque não adianta preservar a natureza e deixar de lado o ser humano. O que a gente vê hoje na Amazônia é a extração das riquezas – e o que fica na região é miséria, é crime organizado.

A morte de Bruno Pereira e Dom Phillips acaba de completar um ano. O que aconteceu poderia ter sido evitado?
Certamente. Conheci os dois. A última operação do Bruno pela Funai foi junto comigo. Ele foi demitido do cargo de chefia que ocupava por causa dessa operação, chamada Corubo, que destruiu 60 balsas de garimpo no Vale do Javari. Na minha opinião, aquilo o deixou marcado. E, ao demiti-lo, o Estado passou uma mensagem muito clara para a marginalidade: praticamente autorizou sua atuação.