Comportamento

Calixcoca, a vacina contra drogas 100% brasileira

Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais desenvolvem imunizante que bloqueia efeito de cocaína e crack no cérebro, e impede que fetos sejam atingidos

Crédito: Denilton Dias / O Tempo

Missão (quase) cumprida: após desenvolverem imunizante, Ângelo de Fátima (à esq.) e Frederico Garcia aguardam investimento para próximas etapas do processo (Crédito: Denilton Dias / O Tempo)

Por Ana Mosquera

Uma vacina terapêutica que pode levar usuários de crack e cocaína a se livrarem da dependência acaba de ser desenvolvida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Calixcoca promete estimular a produção de anticorpos que reduzem a quantidade de droga que chega ao cérebro. O “circuito de recompensa” que alimenta a dependência não é ativado, bem como os efeitos psicoativos deixam de ser percebidos a cada recaída. Aos poucos, a compulsão tende a se dissolver.

“O grande desafio do tratamento é a pessoa em abstinência se manter nesse estado. Assim, ela ganha mais chance e tempo para reconstruir sua vida”, diz Frederico Garcia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador da pesquisa.

Foi sensibilizado pela aflição de usuárias gestantes que corriam o risco de terem seus bebês levados à adoção que o pesquisador deu os passos iniciais.

Na ausência de remédios para tratamento, a vacina aparece como uma solução inteligente para as futuras mães que sofrem com o vício: os anticorpos impedem a passagem das substâncias tóxicas pela placenta, possibilitando o nascimento de bebês saudáveis e partos com menos complicações.

Já os agentes de defesa conseguem furar a barreira placentária e proteger o feto na presença de qualquer vestígio tóxico. “No período de amamentação, os filhotes continuaram recebendo anticorpos pelo leite, fazendo com que fossem menos sensíveis à droga”, fala Garcia, sobre os estudos em camundongos e outros mamíferos.

Função terapêutica: Calixcoca barra o estímulo cerebral, evitando recaída do usuário em abstinência (Crédito:Divulgação)

A ideia de replicar uma vacina norte-americana foi repensada assim que Ângelo de Fátima, professor do Departamento de Química da UFMG, entrou no projeto.

Com sua equipe, ele foi o responsável por desenhar a molécula do V4N2, produzida a partir da própria droga e completamente sintética, o que contribui para a produção dos anticorpos.

Os especialistas esclarecem: quando a vacina tem base proteica, há risco de haver reação cruzada com componentes de outros imunizantes. A plataforma, contudo, pode ser adaptada para substâncias como metanfetamina e nicotina.

“À medida que a Calixcoca avança, o caminho para outras vacinas está sedimentado”, afirma o químico. Só que para as inovações evoluírem é necessário investimento. “Não fazemos nada acontecer sem envolver pessoas, precisamos de recursos”, comenta.

Interesse social

O anúncio tem seu mérito, mas vale saber que a aplicação e o estabelecimento de um novo cenário levam tempo: produção de um lote experimental e pelo menos duas fases de testes, e aprovações por órgãos como a Anvisa estão no pacote. Sem falar na série de medidas para a reinserção social dos ex-usuários.

Nas últimas semanas, a Prefeitura de São Paulo comunicou um investimento de R$ 4 milhões na pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. Ainda que uma luz de esperança se acenda na cidade que abriga a região conhecida como Cracolândia, Frederico Garcia complementa: “É preciso deixar claro, para não gerar uma expectativa falsa, que a vacina não é um tratamento que vai funcionar nem para todo mundo”.

Recuo: testes em camundongos mostraram redução na quantidade das drogas que atingiu o cérebro do grupo imunizado (à dir.) (Crédito:Divulgação)
Vacina antidroga: ciência precisa estar ao lado de iniciativas públicas para reduzir danos sociais (Divulgação)

Dignidade

O sociólogo Paulo Escobar lembra outros acessos que precisam ser garantidos para devolver dignidade aos vulneráveis: saúde, educação, trabalh e moradia: “Tem que ter uma redução de danos sociais. Não adianta a pessoa tomar a vacina, ter tratamentos e voltar para a rua no fim do dia”.

Em convívio com a população em situação de rua há 23 anos e coordenador do Observatório de Pobrefobia, Escobar afirma:

“A gente sabe que a rua e a falta de acesso a direitos que hoje são privilégios potencializam esses problemas. É muito mais difícil se manter quando se está vivendo em condições de miséria extrema”.

O Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, Luiz Carlos Zamarco, vislumbra uma solução para o problema de saúde e social que atinge a capital paulista: “O próximo passo é ir até a universidade para conhecer o projeto de perto, para que os técnicos daqui tenham contato com os profissionais de lá, e assim possamos reforçar com a Prefeitura a importância do investimento”.

O ponto mais importante, como lembra Ângelo de Fátima, é a geração de conhecimento: “Às vezes não somos nós que vamos desenvolver, mas precisamos trabalhar nessa direção”.

Veneno x remédio: cocaína usada para sintetizar as moléculas imunizadoras antes da purificação (Crédito:Divulgação)