Cultura

Gravações seminais do jazz são resgatadas do esquecimento

Descobertas nos EUA, gravações inéditas de Miles Davis e John Coltrane resgatam momentos de transição na carreira de ambos e revelam como eles transformaram a música do século 20

Crédito: Divulgação

John Coltrane (à esq.) e Miles Davis: influência sobre as novas gerações (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

De tempos em tempos, o mundo da música nos brinda com descobertas mais valiosas que qualquer bem material. Graças ao destino, ao acaso ou aos caprichos dos deuses das artes, somos agraciados com gravações inéditas de grandes artistas que nos fazem lembrar por que eles foram e continuam sendo tão relevantes para a cultura mundial.

Por uma dessas incríveis coincidências, isso acaba de acontecer com dois dos maiores nomes do jazz em todos os tempos: Miles Davis e John Coltrane. Duas canções de Davis foram encontradas pelo baterista e produtor Vince Wilburn Jr., sobrinho do trumpetista e responsável por seu legado, junto com Erin e Cheryl Davis, filhos do músico. As sequências melódicas registradas durante os anos 1980 estavam em fitas de estúdio resgatadas durante a pesquisa para o documentário Miles Davis: Inventor do Cool (Birth of the Cool), produzido em 2020 e dirigido por Stanley Nelson.

Hail to the Real Chief (Long Version) e Bitches are Back eram apenas linhas de trumpete, ou seja, solos sem acompanhamento. Wilburn se uniu a Lenny White, baterista que gravou com Davis o revolucionário álbum Bitches’ Brew, e ambos retomaram a MEB — Miles Electric Band, banda que o acompanhava durante sua fase elétrica.

Com o uso de tecnologia, estrelas como os baixistas Ron Carter e Stanley Clarke, o guitarrista John Scofield e o tecladista Bernard Wright, entre outros, foram convidados a gravarem suas partes “ao redor” dos solos originais, criando a sonoridade que resultou no álbum That You Not Dare to Forget.

O tesouro mais recente relativo a John Coltrane teve uma origem bem diferente. Um pesquisador da Biblioteca Pública de Nova York encontrou uma fita com o teste de som que o saxofonista fez em 1961, antes de um show da temporada que seu grupo apresentaria na casa noturna Village Gate, em Nova York. Ele estava acompanhado por Eric Dolphy (saxofone), McCoy Tyner (piano), Reggie Workman (baixo) e Elvin Jones (bateria). Ao longo de oitenta minutos, as feras desfilaram os clássicos My Favorite Things, Impressions, Greensleeves, When Lights are Low e Africa.

A importância da gravação pode ser medida pelo comentário do saxofonista Branford Marsalis, que escreve o texto de apresentação do disco: “Essa fase representa o início de uma grande mudança para Coltrane. Ele estava começando a se esticar em uma nova direção, o som precursor da intensidade tradicionalmente associada ao seu lendário quarteto”.

No texto adicional, o baixista Reggie Workman confirma o raciocínio: “Foi um período exploratório, estávamos buscando novos timbres”.

Antes das gravações que agora vêm à tona, os admiradores de Coltrane já haviam se deleitado com Both Directions at Once, álbum inédito encontrado em 2018. O saxofonista Sonny Rollins, seu contemporâneo, alertou para a importância do lançamento e disse que o achado era tão relevante como “uma nova sala encontrada nas pirâmides do Egito”.

Dimensão

Descobrir novos materiais de gênios como Miles Davis e John Coltrane reforça a dimensão de seus talentos e explica a influência que continuam a ter sobre as novas gerações. Afinal, Davis revolucionou a música em pelo menos três ocasiões: como expoente do cool jazz, nos anos 1950; na criação do estilo modal, mudança radical da estrutura melódica que gerou o álbum mais vendido da história do estilo, Kind of Blue, de 1959; e nos anos 1970, quando incorporou elementos do rock e inventou o fusion.

Os sons encontrados agora fazem parte desse último período, o chamado “Miles Elétrico”. No caso de Coltrane, o que pode ser compreendido por meio da parceria com Eric Dolphy e companhia, são os primeiros rascunhos do que ele viria a consolidar em 1965, com o magnífico A Love Supreme. “O amanhã pertence a quem consegue ouvi-lo”, afirmou uma vez David Bowie. Miles e Coltrane conseguiram — e, agora, entendemos melhor como eles chegaram lá.

Zev feldman: o detetive abriu uma gravadora

O produtor Zev Feldman é famoso no mercado por rastrear tesouros de alguns dos músicos mais icônicos da história. Entre suas descobertas estão as sessões de Nat King Cole realizadas entre 1936 e 1943, além de materiais raros do pianista Bill Evans, do guitarrista Wes Montgomery e do saxofonista Sonny Rollins.

A obsessão virou negócio: após trabalhar como consultor para as maiores gravadoras do mundo, entre elas a Blue Note Records, Feldman abriu a Jazz Detective. A iniciativa lhe rendeu o apelido de “Indiana Jones do Jazz”, em homenagem ao arqueólogo do cinema.

“Quero focar no lançamento de canções que ainda não foram ouvidas”, definiu. O primeiro projeto foi o resgate de dois shows do pianista Ahmad Jamal, Emerald City Nights: Live at the Penthouse (1963-64) e (1965-66), apresentações ao vivo do mestre que morreu em abril, aos 92 anos. “É uma honra trabalhar com alguém que eu passei a vida inteira ouvindo”, disse.

Zev Feldman: novo selo especializado em raridades (Crédito:Divulgação)

O maior sucesso da Jazz Detective, porém, é Chet Baker Blue Room: The 1979 VARA Studio Sessions in Holland, lançado no início de 2023. O trumpetista norte-americano é acompanhado por Phil Markowitz (piano), Jean-Louis Rassinfosse ( baixo) e Charles Rice (bateria). Feldman elogiou a qualidade vocal de Baker em Oh, You Crazy Moon e Candy.

Outro disco aguardado é Art Blakey and The Jazz Messengers LIve at Jazz Workshop 1970, gravado em Boston. É o único registro da formação que incluía Andy Bey (piano), Ramon Morris (sax) e Isao Suzuki (baixo). São três horas de novos sons descobertos pelo “detetive”.

Chet Baker: sessões secretas na Holanda (Crédito: Leemage via AF)