Brasil

O anfitrião fez o País passar vergonha

Lula reuniu chefes de Estado da América do Sul para promover maior integração do continente. O encontro gerou um documento pífio, mas até aí tudo bem, não tivesse o presidente brasileiro afirmado que a ditadura do venezuelano Nicolás Maduro é somente uma “narrativa”

Crédito: Gustavo Moreno

Maduro e Lula: o ego do primeiro foi massageado pelo anacronismo do segundo (Crédito: Gustavo Moreno)

Por Antonio Carlos Prado e Samuel Nunes

O presidente Lula continua preso a retrógadas e anacrônicas ideologiazinhas que em nada o engrandecem enquanto político nem fazem bem à imagem internacional do Brasil — ao contrário, deterioram-na ainda mais, justamente no tempo histórico em que teria de se dar o inverso, tal foi o desgaste global sofrido pelo País na gestão bolsonarista.

Lula promoveu no início da semana passada, no Palácio Itamaraty, em Brasília, um encontro com líderes sul-americanos. A iniciativa de integrar as nações vizinhas é elogiável, promovendo a cooperação econômica, ainda que seja inessencial a criação de uma moeda-referência em substituição ao dólar nas transações comerciais.

Vale, no entanto, a atuação multilateral no âmbito da saúde, educação, ciência, energia limpa e meio ambiente. Denominado “Consenso de Brasília”, o documento final da reunião de cúpula contempla esses pontos, à exceção da moeda comum defendida por Lula. Quanto aos outros tópicos, são tão sólidos que se desmancham no ar. Cuidar pragmaticamente dos interesses da América do Sul, estando o Brasil em tal geopolítica, é boa atitude. E boa atitude também seria, ainda no campo do pragmatismo, cobrar do governo venezuelano os R$ 6 bilhões que ele nos deve.

Gabriel Boric, centro-esquerda, presidente do Chile: “Há discrepância entre a realidade e as declarações de Lula” (Crédito:Evaristo Sa / AFP)

Falando-se em Venezuela, o que se tornou prevalente na reunião de cúpula refere-se a ela – e com desdobramentos negativos para o Brasil. Por que isso ocorreu? Simplesmente porque foi absurda a cumplicidade com que os “companheiros” Lula e o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, trocaram abraços.

O auge dos afagos de boas-vindas deu-se quando o mandatário brasileiro declarou que a Venezuela é governada “em regime democrático”. Lula, e somente Lula, acha isso.

Em sua concepção, todas as denúncias de violações de direitos humanos, perseguições, prisão de jornalistas e oponentes do regime, torturas e arbitrariedades – tudo observado pessoalmente por inspetores da ONU – não passam de “narrativa construída contra Maduro”. Uma das torturas mais praticadas, ainda de acordo com a ONU, é a empalação. E desde 2014 foram presos 5,6 mil oposicionista. Em pleno século 21, vive a Venezuela como se estivesse nos inquisidores tempos de Tomás de Torquemada.

Luis Lacalle Pou, líder da direita, presidente do Uruguai: “O pior que podemos fazer é tapar o sol com um dedo” (Crédito:Sergio Lima / AFP)

Ideologiazinha oca

Deve igualmente ser narrativa, e só narrativa apesar das imagens, a agressão a uma repórter da Rede Globo por parte de um segurança de Maduro – em pleno chão brasileiro.

Para Lula, que realçou em sua campanha o apego aos direitos humanos, o relatório da ONU, dando conta de que o regime venezuelano reprime dissidentes por meio de crimes contra a humanidade, não é importante. E idem a fuga desesperada de venezuelanos socialmente vulneráveis para o Brasil (cerca de 300 mil), a miséria que corrói o país, a mordaça na liberdade de expressão – tudo faz parte da narrativa que, argumenta o mandatário brasileiro, foi montada pelos EUA e pela União Européia.

Lula tem uma lógica que atropela a razão: se a população da Venezuela passa por desventuras, a responsabilidade é das sanções impostas pelo governo norte-americano.

Ele repete, assim, uma ridícula toada, também de sua autoria: a responsabilização da própria Ucrânia pela invasão que sofreu por parte do totalitário presidente russo, Vladimir Putin. Lula transforma a vítima em culpada e faz do algoz coitadinho.

Líderes sul-americanos no Palácio Itamaraty, em Brasília: a moeda-referência que Lula queria sequer consta do documento final (Crédito:AP Photo/Gustavo Moreno)

Essa é a oca da ideologiazinha já citada acima. Externamente o presidente brasileiro sujou o nome do País e internamente conseguiu desfazer a tão decantada “frente ampla democrática”, que diz liderar.

Aos eleitores que o recolocaram no Planalto, quer acreditem que ele seja democrata, quer tenham visto em seu nome uma segura opção para nos livrarmos de Jair Bolsonaro, ficou a perplexidade: o que levou Lula a afagar o ego de Maduro? Por que financiar obras de infraestrutura na Venezuela se ela está inadimplente conosco? A resposta que se encontra é amiudada: Lula desanda a defender ditaduras populistas de esquerda somente porque são de esquerda.

Manifestantes venezuelanos em seu país: realidade que não comporta a apologia de Lula (Crédito:Raul Arboleda / AFP)

É normal que convidados falem mal de anfitriões quando acaba uma festa — cada um no seu canto. Mas falar durante a festa, e na cara do anfitrião, isso só se vê quando ocorre algo muito grave. Foi o que aconteceu com o anfitrião Lula.

Olhos nos olhos, ele teve de ouvir críticas de presidentes, sobretudo do Chile e Uruguai, respectivamente Gabriel Boric e Luis Lacalle Pou. O mandatário chileno, mesmo sendo de esquerda, impacientou-se com a teoria das narrativas: “Há discrepância entre a realidade e as declarações de Lula sobre o governo venezuelano”.

No Brasil, a repercussão da conduta do presidente, ele mesmo já vítima de prisão arbitrária na ditadura militar, também foi ruim. Pesquisa Quaest apontou que 59% das menções feitas ao encontro dos dois presidentes foram negativas. São números; não narrativas.

Imigrantes da Venezuela em Roraima: seis mil pessoas em situação de vulnerabilidade social (Crédito:Nelson Almeida)