Comportamento

A revolução humana dos chips

Empresas competem por investidores que já possibilitam projetos de interação cérebro-computador para melhorar qualidade de vida e mesmo curar lesões antes tidas como irremediáveis

Crédito: Paradromics

24 de maio de 2023: nesse dia, imagens de Gert-Jan Oskam andando, por meio de estímulos elétricos de chips implantados, correram o mundo (Crédito: Paradromics)

Por Denise Mirás

Quando o holandês Gert-Jan Oskam surgiu em vídeos mostrando que havia recuperado sua capacidade de andar, depois de uma década do acidente que o deixou sem movimentos, um espanto percorreu o mundo. O estímulo elétrico na medula que possibilita suas caminhadas é executado por meio do implante de chips em dois locais de seu cérebro e outro na coluna vertebral, em uma espécie de ponte que passa ao largo da lesão sofrida em um tombo de bicicleta. O “novo” Oskam é obra de uma equipe de cientistas liderada pelo francês Grégoire Courtine, referência mundial em neurotecnologia.

A corrida de concorrentes pelos melhores resultados dessa revolução com BCIs (Brain Computer Interface, ou tecnologia de interface cérebro-computador) vem de pelo menos 20 anos, mas nitidamente se acentua agora em 2023.

Com essa possibilidade, depois do marco da Revolução Industrial já vivemos outro grande salto na história do planeta. É a Revolução Humana, como destaca Fabiana Nascimento, também especialista em neurotecnologia.

Grégoire Courtine mostra o sistema embarcado em Oskam (Crédito:Divulgação)

Financiamentos de bilhões de dólares se espalham pelas empresas voltadas a essa área. Apenas para testes de um projeto recente (um implante cerebral em vaso sanguíneo, com eletrodos de 1,5mm de comprimento e meio fio de cabelo na largura, para alcançar neurônios), a Paradromics somou US$ 18 milhões em subsídios do governo a US$ 47 milhões de investidores.

À parte a Onward, empresa de Grégoire Courtine e da neurocirurgiã Jocelyne Bloch, outras gigantes além da Paradromics, como a Synchron e Blackrock, já apresentaram resultados dos implantes de seus chips, que chegam a permitir a comunicação da mente em direto com um computador.

“Se faz ainda urgente trazer a pauta da neuroética para o debate.”
  Fabiana Nascimento, especialista em neurotecnologia, usando um headband

(Crédito: Divulgação)

Agora será a vez da Neuralink, de Elon Musk, que conseguiu aprovação na FDA americana para testes em humanos de seus três chips. Dois deles visam a proporcionar visão inclusive para pessoas que nasceram cegas, e um terceiro, para restaurar a funcionalidade de todo o corpo de quem teve a medula afetada.

“Contra” o montante muito maior de bilhões que Musk consegue, a Paradromics quer ganhar mercado com sua maior velocidade. Segundo estimativas, somente nos EUA são 5,4 milhões de pessoas sofrendo com capacidade motora limitada, e pelos menos 50 milhões em países de alta renda já poderiam se valer de BCIs até 2025.

Zonas diferentes do cérebro podem ser estimuladas para se conseguir mais atenção, por exemplo (Crédito:Divulgação)

Invasiva ou ‘vestível’

Idealizadora do hub World Neurotechnologies Forum (WNF), Fabiana diz que vivemos uma Revolução Humana, aberta pela neurotecnologia ­— seja por meio invasivo (com chips cirurgicamente embarcados no próprio corpo), seja “vestível”, com funções voltadas para performance, os avanços nesse campo são assombrosos.

Se já existem neuropróteses sensíveis ao tato para amputados, com conexão em terminações nervosas, a “vestimenta” também pode ser um headband, espécie de “tiara” que age sobre determinadas zonas do cérebro, como cognição ou atenção. Ou ainda em forma de capacete ou óculos, usados em treinamento do cérebro por meio de estímulos. Fabiana ainda cita o aprendizado de gestão de energia, objeto de estudos no Centro de Performance Humana, ligado ao WNF.

“Precisamos aprender a lidar com a mente de uma forma mais pragmática, com propósito, e em sintonia com o mais saudável para nós mesmos e os outros.”

Sobre os chips implantáveis com cirurgia, Fabiana vê “com bons olhos” a possibilidade de cura para lesões cerebrais ou mesmo doenças mentais, mas observa: “Claro que, sendo invasiva, temos medo e é preciso ter medo mesmo. De rejeição, por exemplo. Temos muito que pensar, questionar, debater. Mas o avanço é tão rápido que em cinco anos já deveremos ter soluções no mercado”.


Chip implantável da Paradromics, uma das empresas na corrida pela neurotecnologia (Crédito:Divulgação)

Enquanto isso, a especialista lembra de outro ponto fundamental: a neuroética.

Com as bigtechs buscando seu pensamento, influenciando e manipulando o tempo todo, como fica nossa privacidade mental? O Judiciário deve olhar com mais atenção esse campo, porque precisamos de princípios e meios para que o setor seja regulado e os benefícios fluam da melhor maneira, com uma espécie de guia para que academia, empresas e governo estejam na mesma página.”

Musk, para ela, chegou depois e sabe fazer barulho. “Como alavancador, traz atenção para uma área tão importante não passar despercebida. Mas pelo lado comercial ainda ignora questões fundamentais. Por isso, se faz ainda mais urgente trazer a pauta da neuroética para o debate.”