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Marina Silva, a fiadora da preservação ambiental

Marina Silva promete garantir a manutenção de políticas antidesmatamento, mas enfrenta fogo amigo no governo e a fortalecida bancada ruralista no Congresso. Apesar de a agenda verde ser crucial para Lula, é a área em que ele mais coleciona derrotas no seu terceiro mandato

Crédito:  Miguel Schincariol / AFP

Marina Silva em 2014, ao apoiar o PSDB no segundo turno da eleição presidencial: após romper com Lula em 2008, ela voltou ao governo do PT numa frente ampla (Crédito: Miguel Schincariol / AFP)

Por Marcos Strecker

Nos anos 2000, Marina travava um embate da preservação ambiental contra a ala desenvolvimentista do governo do PT. Após pedir demissão no segundo mandato de Lula e romper com o então presidente, alegando que era um gesto para reforçar a pauta de proteção da floresta, sua imagem de integridade se fortaleceu e seu papel no Brasil e no exterior ganhou mais relevância. Agora, de volta a um governo do PT, mas de frente ampla, que ela representa, Marina virou o bastião dessa agenda central para a atual administração.

A pauta ambiental não significa apenas um imperativo moral. Passou a ser central para todas as sociedades, para o desenvolvimento da economia global e a preservação da democracia. É fundamental para atrair investimentos, modernizar a economia e recolocar o Brasil como protagonista no cenário internacional. Por isso, a ministra representa, de certa forma, a alma do governo. E sua posição nunca foi tão importante para evitar que a “boiada passasse”, ou seja, um recuo histórico na agenda ambiental.

O papel da ministra foi essencial numa semana em que o patrimônio ambiental esteve sob ataque no Congresso. As dificuldades políticas no Legislativo e tropeços próprios do governo colocaram o País diante de um retrocesso inimaginável desde a eleição do ano passado, com o risco de políticas predatórias do governo Bolsonaro ressuscitarem.

O sinal amarelo acendeu quando o governo teve que ceder no esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Na iminência de ver a Medida Provisória que criou as pastas do atual governo caducar no Congresso, retornando a Esplanada dos Ministérios ao desenho do governo anterior (com a perda de 17 das 37 pastas), os articuladores do Planalto aceitaram esvaziar o setor ambiental.

O Meio Ambiente perdeu o poder de gerir o Cadastro Rural, essencial para controlar o avanço do desmatamento e da grilagem, e de normatizar a gestão sustentável da água por meio da Agência Nacional de Águas (ANA). O Ministério dos Povos Indígenas, de Sonia Guajajara, deixou de ter a prerrogativa de demarcação de novas reservas.


Indígenas guaranis fecham a rodovia Bandeirantes (SP) dia 30 após a aprovação do PL 490 (Crédito:Bruno Santos)

Esse não foi o único recado que o Congresso eleito em outubro deu a Lula. O presidente da Câmara, Arthur Lira, também conseguiu aprovar na última terça-feira o projeto do Marco Temporal, que restringe as reservas indígenas às áreas que já eram ocupadas na data da promulgação da Constituição, em 1988.

Mais que isso, a lei elimina direitos garantidos, permite a exploração econômica predatória e retoma, na prática, a tutela sobre os indígenas que vigorou até a ditadura.

A fragilidade do governo Lula

Esse tsunami antiambiental, que nega a essência do projeto aprovado nas urnas, causou a maior crise do terceiro governo Lula, superada apenas pela tentativa de golpe no 8 de janeiro. A maioria conservadora do Congresso acuou o Planalto, que não conseguiu gerir com eficiência sua frágil coalizão nem organizar a pauta legislativa com o Centrão, que se sente empoderado e reclama de verbas e cargos no segundo escalão acordados no varejo e nunca entregues.

Lula convocou uma reunião de emergência no Planalto para evitar que seu governo fosse desfigurado e ameaçado com apenas cinco meses de mandato. Para evitar uma derrota completa, ele autorizou a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas na quarta-feira, valor recorde nesta gestão.

Na bacia das almas, a MP foi aprovada no final do dia, e referendada pelo Senado no dia seguinte, um episódio que fragilizou o governo e impôs um alto custo político.


O ator Leonardo DiCaprio usou o Twitter para alertar contra a aprovação do Marco Temporal no Congresso

Voz contra o recuo

A voz mais firme contra o recuo, especialmente na área ambiental, veio de Marina Silva, que opera na prática como fiadora dessa agenda.

“Infelizmente, nós estamos vivendo uma situação em que alguns setores querem reeditar a estrutura de governança de Bolsonaro no governo de Lula, desrespeitando a autonomia que o governo tem em relação à gestão”
Ministra Marina Silva

O problema, no entanto, não é apenas a falha na articulação política de Lula. Vozes do próprio governo fizeram acender o sinal de perigo em relação ao compromisso com a agenda de preservação.

O primeiro alerta aconteceu no dia 17, quando o Ibama, órgão sob o guarda- chuva de Marina, negou o pedido da Petrobras para explorar petróleo na Foz do Rio Amazonas – uma decisão técnica e justificada.

Criticaram a medida o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira,e o presidente da estatal, Jean-Paul Prates. O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, não apenas condenou a iniciativa como anunciou a desfiliação da Rede Sustentabilidade, partido da ministra. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, disse que não fazia sentido negar recursos que poderiam abastecer o Amapá, enquanto o Rio de Janeiro e outros estados se beneficiam do petróleo. O senador Davi Alcolumbre, que indicou nada menos que três ministros, tripudiou Marina. “Ela é gente boa. É bom ela ficar para ir lá com a gente inaugurar o poço.”

Ele estaria apostando até na queda da ministra, como forma de aumentar seu espaço no governo.

Lula assina decretos de demarcação em 28 de abril no acampamento indígena Terra Livre, em Brasília (Crédito:Divulgação)

A titular do Meio Ambiente não se abalou: “Decisão técnica em um governo democrático é cumprida e respeitada”, afirmou. O próprio Lula se reuniu com Marina e Sonia Guajajara no dia 26, procurando garantir que lutaria para reverter o esvaziamento ambiental. “O presidente deu uma mensagem de que vamos trabalhar até o último momento para preservar as atribuições dos dois ministérios. Essas políticas estão no coração do governo”, ela declarou.

Mas Lula não conseguiu reverter o esvaziamento no Congresso e os tropeços continuaram. A desidratação da área ambiental teve a aprovação de votos do próprio PT, assim como a aprovação do Marco Temporal, na terça-feira, contou com a maioria dos votos de partidos da base, como União, PSD e MDB.

“Eu sou governo, muito mais do que a Marina. Pode puxar a história”, desancou o deputado Isnaldo Bulhões (MDB), relator da comissão mista que desfigurou a MP da reestruturação ministerial antes de sua apreciação no Plenário.

Articulação falha

“Não creio que seja exatamente um problema de articulação no Congresso. Lula imaginou que poderia montar uma coalizão usando as mesmas ferramentas que usou nos outros governos dele, sobretudo distribuindo ministérios. Mas não é mais assim”, avalia o sociólogo Sergio Abranches. Depois do orçamento secreto no governo Bolsonaro, os deputados passaram a exigir nacos das verbas públicas diretamente para suas bases, argumenta.

Ele também aponta que a ruptura de Randolfe Rodrigues com Marina expôs uma fratura dentro do governo. E essa ambiguidade, ou contradição interna, está sendo alimentada pelo próprio presidente. O especialista lembra que Lula, na sua única declaração oficial sobre o assunto, disse que achava difícil haver risco ambiental na Amazônia pois o ponto de exploração fica a 500 km de distância.

“O presidente tem que começar a deixar claro se de fato a questão ambiental tem centralidade e é prioritária, como ele disse no exterior e na campanha.”
Sociólogo Sergio Abranches

Ambientalistas cerram fileiras com Marina e, mais do que isso, condenam a exploração na Foz do Amazonas, que veem como uma medida capaz de isolar o País no cenário internacional. “Sem dúvida, a agenda ambiental do governo Lula está em risco”, diz o climatologista Carlos Nobre, referência mundial na pesquisa sobre mudanças climáticas.

Segundo ele, a exploração nessa região representa um retrocesso. “É uma questão política, científica e econômica: gerar energia com petróleo, gás natural ou carvão é muito mais caro do que a energia renovável.” Ele destaca que é essencial derrotar essa “iniciativa desestruturante do Congresso”.

Marcio Astrini, do Observatório do Clima, lembra que há vários projetos nesse sentido prontos para serem votados, como o relaxamento na utilização de agrotóxicos, a liberação da caça e a facilitação no licenciamento de terras.

E há novas ameaças no horizonte. Parlamentares da região amazônica querem retomar a discussão para liberar a mineração na Reserva Nacional do Cobre e seus Associados (Renca), uma área preservada de cerca de 46 mil km quadrados localizada no Pará e no Amapá. “O Congresso vai atuar para impor essas derrotas. Ele tem como pauta a herança do governo Bolsonaro, seu legado atravessou a rua e foi para o Congresso”, diz Astrini.

Governo hesita

O ambientalista confia no compromisso do governo, mas também acha que houve falhas. Na votação do Marco Temporal, por exemplo, o Planalto orientou pela abstenção. “Isso enfraquece o governo, não atinge apenas a Marina. A postura oficial acendeu o alarme. Parece que o Congresso estava aplicando um golpe, e os negociadores do governo assistiam a isso de forma confortável”, diz.

Ele minimiza, no entanto, o esvaziamento das pastas ambientais, já que o governo pode preservar a atribuição das duas ministras mesmo com a realocação dos órgãos.

De todas as medidas, a que mais alarmou Astrini foi o Marco Temporal, capaz de abrir as reservas à exploração predatória e levar a questão indígena de volta aos anos 70. Especialistas consideram que as brechas vão permitir atividades de garimpo e agropecuária e a abertura de rodovias, além de empreendimentos com a iniciativa privada e não indígenas.

Na prática, se promulgada, a lei vai paralisar todos os processos de demarcação em andamento (há pelo menos 303 em tramitação). É quase certo que essa norma será modificada no Senado, e o STF também pode revê-la. Afinal, a pressa na votação se deu porque a Corte marcou para a próxima quarta-feira o julgamento de uma ação originada em Santa Catarina contra indígenas do povo Xokleng, que terá repercussão geral, ou seja, será aplicada em todos os tribunais do País.

A bancada ruralista e o Centrão impuseram uma derrota a Lula, mas também deram um recado ao STF. Lira tentou negociar com o governo o adiamento da votação se o STF adiasse a apreciação da matéria, mas o balão de ensaio não prosperou.

“O Congresso precisa demonstrar ao STF que está tratando a matéria com responsabilidade. Não temos nada contra os povos originários, mas estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% do território”, declarou o presidente da Câmara.

Astrini está confiante que Lula exercerá seu poder de veto, caso a lei seja sancionada.

O relator Isnaldo Bulhões (esq.) e Arthur Lira, na quarta: demonstração de força contra o governo (Crédito:Pedro Ladeira)

Outra MP aprovada de afogadilho na Câmara no dia 24 também preocupa os ambientalistas, a que relaxa o controle sobre a Mata Atlântica. “Esse é o único bioma que tem uma lei especial, que trata do seu uso sustentável e conservação”, alerta Malu Ribeiro, diretora na SOS Mata Atlântica. “Conseguimos resistir durante os quatro anos de Jair Bolsonaro, apesar do governo, do Centrão e da força da bancada ruralista. E agora essa MP lançada no apagar das luzes de 2022 acabou recebendo todos esses jabutis e sendo aprovada na Câmara”, protesta.

Para Luiz Marques, professor sênior no Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais, a norma aprovada abole dispositivos de proteção. “A MP introduz barbaridades, como o desmatamento linear.”

A medida também foi criticada por Rogério Aparecido Machado, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie: “Em nenhum momento está sendo colocada uma tecnologia avançada para fiscalizar e preservar. É apenas para facilitar o acesso”.

Nesse caso, o STF também pode conter a decisão na Câmara, já que nesta sexta-feira, 2, a Corte começou a julgar uma ação proposta por Bolsonaro em 2020, que visa aumentar a exploração comercial no bioma anulando dispositivos do Código Florestal e da Lei da Mata Atlântica.

Tamanho retrocesso ocorre quando os setores produtivos, inclusive no agronegócio, apontam que abraçar a causa ambiental é fundamental para ampliar mercados e garantir as exportações.

A Febraban, por exemplo, anunciou uma medida de autorregulamentação em que os bancos se comprometem a liberar créditos apenas para frigoríficos e matadouros que comprovarem não comprar gado de abate proveniente de áreas de desmatamento ilegal da Amazônia e do Maranhão. Vinte e uma instituições já assinaram o compromisso, incluindo Bradesco, Itaú Unibanco, Santander, Banco do Brasil e CEF. É a primeira vez que há um protocolo detalhado para um segmento específico.

“Como um setor estratégico, os bancos não poderiam ficar inertes e apenas acompanhar a distância um tema crucial para esta e as próximas gerações”, diz o presidente da entidade, Isaac Sidney.

E a comunidade internacional está se mobilizando. Após ser reativado, o Fundo Amazônia já recebeu este ano importantes aportes dos EUA (R$ 2,5 bilhões) e do Reino Unido (R$ 500 milhões), além de novos recursos da Alemanha.

Relação com o agro

Mas esse empenho pode não ser suficiente para garantir o avanço da pauta ambiental. O PIB cresceu no primeiro trimestre 1,9%, como o IBGE acaba de divulgar, um número surpreendente puxado essencialmente pelo agronegócio.

O resultado dá mais força para a bancada ruralista, que está fortalecida no Congresso e alinhada com o Centrão. O setor, que foi em peso à China na última viagem presidencial para garantir a ampliação dos negócios com o gigante asiático, ficou irritado com a presença na comitiva oficial de João Pedro Stédile, líder histórico dos sem-terra e defensor da retomada das invasões no campo.

A falta de percepção sobre esses sinais indica que o setor ambiental pode sofrer novos revezes.

Isaac Sidney, presidente da Febraban: “Como um setor estratégico, os bancos não poderiam ficar inertes nesse tema” (Crédito:Divulgação)

Apesar disso, o ataque especulativo nessa área pegou o governo no contrapé. A ONU acaba de escolher Belém para sediar a COP30, em novembro de 2025, um anúncio comemorado por Lula no dia 26. Foi na edição do ano passado, no Egito, que o petista anunciou que o “Brasil está de volta” e reafirmou o compromisso de seu governo contra as mudanças climáticas.

Em Belém, a expectativa é de um encontro decisivo, quando os países deverão apresentar metas mais ambiciosas de queda na emissão de carbono. Por ocorrer na região Amazônica, o evento também tem uma relevância simbólica, que pode ser aproveitada pelo chefe do Executivo.

Porém, com as invertidas no Legislativo, o risco é o governo sediar um encontro para transmitir uma imagem de nação que está na contramão do mundo, ao invés de recuperar sua posição de vanguarda.

Os ambientalistas ainda consideram que Marina é uma garantia contra os recuos, não só pela sua estatura internacional, mas também pela força que tem no próprio governo. Ela alertou que retrocessos podem prejudicar o acordo Mercosul-União Europeia, que é estratégico para o governo Lula. “Ela é uma pessoa muito forte. Tem o apoio explícito do presidente. É ela quem vai entregar a baixa na taxa de desmatamento”, diz Astrini.

Para ele, Lula deseja se beneficiar na COP30, que representa um ponto de virada. “Lula entende a importância do clima para o combate à pobreza e à miséria. Ele estudou. Tem planos maiores.”

Derrotados: Randolfe Rodrigues, Rui Costa, Alexandre Padilha, Paulo Pimenta e José Guimarães, no dia 26 (Crédito:Gabriela Biló)

A BOIADA NO CONGRESSO
Medidas aprovadas e o risco para o meio ambiente

Marco Temporal
• Muda a demarcação de terras indígenas. Povos originários precisam comprovar que ocupavam as terras em 1988
• Libera o contato com povos isolados em caso de “utilidade pública”
• Territórios passam a ser explorados economicamente, inclusive por não-indígenas

MP da Mata Atlântica
• Facilita o desmatamento das áreas mais bem preservadas
• Permite linhas de energia e gasodutos sem estudo prévio de impacto ambiental
• Acaba com a necessidade de corredores ecológicos, o que favorece o desflorestamento

MP da Reestruturação
• O Cadastro Ambiental Rural (CAR), que inibe grilagem e o desmatamento, sai do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e vai para o ministério da Gestão
• Os sistemas de saneamento básico e recursos hídricos também saem do MMA e passam para o Ministério das Cidades
• A Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), da mesma forma, passa a ser vinculada ao Ministério da Integração
• O Ministério dos Povos Indígenas deixa de demarcar terras indígenas. Essa competência passa a ser do Ministério da Justiça

 

Colaboraram Gabriela Rölke e Elba Kriss