Brasil

Big techs na mira da lei

A ofensiva do governo, da Justiça e da sociedade contra a desinformação e os crimes que correm impunes nas redes sociais vai se intensificar, apesar do risco de derrota ter levado ao adiamento da votação da PL das Fake News

Crédito:  Pedro Ladeira

MEMÓRIA Protesto do grupo Avaaz em frente ao Congresso, na terça-feira, lembrou os estudantes vítimas de massacres (Crédito: Pedro Ladeira)

Por Marcos Strecker e Victor Fuzeira

Há pelo menos sete anos os EUA e a Europa discutem formas de conter a manipulação política e as fake news que tornaram as redes sociais instrumentos de ataque à democracia e difusão dos discursos de ódio, além de terreno fértil para crimes. No Brasil, o Congresso debate há quase três anos uma forma de regular a informação no espaço virtual, mantendo princípios constitucionais como a liberdade de expressão. A campanha negacionista que dificultou a vacinação contra a Covid e os ataques à sede dos Três Poderes em 8 de janeiro deixaram patente a urgência de aprovação dessa matéria. As chacinas em escolas que vitimaram crianças e professores em São Paulo e Blumenau (SC), em março e abril, reduziram ainda mais os argumentos daqueles que resistem a levar a lei também para o espaço virtual.

Ainda assim, os grupos de pressão levaram a um novo adiamento do Projeto de Lei 2630, que seria votado na última terça-feira, 2. Inspirado na regulação europeia, ele torna as gigantes tecnológicas corresponsáveis pelas informações que veiculam em redes sociais e serviços de mensagem, aumentando a transparência sobre suas atividades, exigindo a identificação de usuários e permitindo que a Justiça atue com mais eficiência para remover conteúdo delituoso. Ainda assim, foi apelidado pelos detratores de “PL da Censura”. O órgão independente a ser criado para aplicar a lei foi eliminado antes de a proposta ser apresentada pelo relator Orlando Silva (PCdoB). Mesmo depois disso, foi tachado pelos críticos de “Ministério da Verdade”.

EM AÇÃO O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, leva à Câmara sugestões para a PL, dia 25 (Crédito:Wilton Junior)

O adiamento da proposta ocorreu porque a base parlamentar do governo Lula, interessado na lei, ainda se mostra fragilizada. Seria o primeiro grande teste da gestão petista no Legislativo. Nem mesmo a ação do ministro Alexandre de Moraes, que investiga ataques à democracia no STF, foi suficiente para convencer os parlamentares. Ele apresentou contribuições ao texto, mandou remover anúncios que atacavam o texto nas plataformas sem respeitar a isonomia e solicitou à PF que ouvisse os presidentes das big techs, pela suspeita de abuso de poder econômico e contribuição à desinformação. O próprio deputado Orlando Silva cedeu às pressões da oposição e solicitou a suspensão ao presidente da Câmara, Arthur Lira. Foi uma forma de evitar a derrota, que poderia enterrar de vez a proposta. A expectativa é de que ela só retorne à pauta em duas semanas, no mínimo. Horas antes da abertura da sessão plenária, Lira ouviu de líderes que não havia clima para a apreciação. Alguns sugeriram à Mesa Diretora que se fizesse um ‘teste’. O objetivo era apresentar um requerimento de obstrução e, caso a maioria votasse a favor, a apreciação seria adiada. O governo, porém, tentou se antecipar ao vexame e recomendou a Silva o recuo, o que estampou a derrota do governo e dos seus articuladores políticos.

RECUO Relator do PL 2630, Orlando Silva pediu adiamento para evitar a derrota (Crédito:Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

Mesmo quando a apreciação for retomada, haverá muito embate. Mais de 90 emendas foram apresentadas sugerindo alterações ou destaques. O adiamento abre a hipótese de um fatiamento do PL. Seriam apreciados, num primeiro momento, os itens de consenso. Trechos mais polêmicos ficariam para depois. Outra possibilidade é votar um substitutivo. Em reunião com Lira, alguns líderes chegaram a defender a judicialização do assunto. Ou seja, parte dos deputados quer empurrar para o Judiciário a tarefa de discutir a regulação das plataformas. No entanto, essa tese não deve vingar se depender do presidente da Câmara.

POLÊMICA O Google incluiu abaixo de seu buscador um link crítico ao projeto (Crédito:Aloisio Mauricio)

O Planalto não pode alegar que estava “no escuro” sobre o risco de ver o texto derrubado. Lula foi avisado pessoalmente por Lira sobre essa possibilidade, em reunião no Palácio da Alvorada, momentos antes da sessão. Outra forte demonstração do clima desfavorável foi dada na semana passada, durante a votação do requerimento de urgência para apreciação do PL. Apesar de ter conseguido a maioria, o Executivo acabou surpreendido com votos contrários de integrantes de partidos governistas, como União Brasil e PDT. Essa dificuldade em pacificar o projeto também esteve presente nos embates travados por opositores e governistas ao longo do dia da votação.

“Poderíamos ter aprovado após a urgência ser decidida. Mas demos oito dias para que as big techs fizessem o horror que fizeram com a Câmara” Arthur Lira, presidente da Câmara

Mais debate

O adiamento serviu para confirmar as dificuldades de Lula no Legislativo, mas também mostrou que o debate sobre um tema tão nevrálgico pode ser ampliado. Bolsonaristas, que se beneficiaram da terra sem lei em que se transformaram as redes, usaram a disputa para atacar o suposto açodamento e o risco de perda de garantias constitucionais. A crítica de opositores a uma suposta “criminalização” das plataformas, por exemplo, encontra eco entre alguns especialistas. Em entrevista à ISTOÉ, Luiz Guilherme Ros, consultor do Programa das Nações Unidas perante o Cade no projeto Control of Data, Market Power and Potential Competition in Merger Reviews, afirma que a proposta “impõe ônus severo às redes sociais”. “A obrigação das plataformas de limitar os conteúdos, além de ser uma tarefa hercúlea para a qual até o Judiciário tem tido dificuldades, trará ineficiência à atuação delas. Essa regulamentação ficará obsoleta em um curto espaço de tempo e, futuramente, tornaremos a discuti-la”, argumenta.

RISCO O presidente da Câmara, Arthur Lira, articulou com Lula a estratégia para a votação (Crédito:Mauro Pimentel / Afp)

“Regulação democrática”

Já para Jonas Valente, membro da Coalizão de Direitos na Rede, o relatório “é uma mediação possível de uma regulação necessária”. “Esse projeto vem sendo discutido desde 2020. Essas falas de que há um atropelo não fazem sentido. Esse é um texto que já foi aprovado pelo Senado, passou por dezenas de audiências e ouviu-se mais de 100 especialistas de diversos campos — representantes das plataformas, empresas e governos. É uma regulação democrática, não é de um governo. Contrapõe-se ao vale-tudo que existe hoje. As plataformas, de fato, já estão sujeitas à lei, mas a legislação atual é extremamente insuficiente. Essa é uma questão discutida globalmente e em várias democracias avançadas”, explica. O pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) acredita que o texto traz “respostas a problemas reais”. “Essa redação prevê mecanismos para combater diversos tipos de abusos, e não estamos falando de situações hipotéticas.”

A maior ofensiva ao projeto veio da big techs, que lançaram verdadeiras campanhas, entre as quais se destaca a atuação do Google. Na segunda-feira, 1º, o site exibiu abaixo da caixa de buscas o link para um texto com o seguinte título: “O PL das fake news pode piorar sua internet”. A matéria veiculada pelo blog oficial da empresa é assinada por Marcelo Lacerda, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da companhia. O texto diz, entre vários pontos, que a proposta irá “proteger quem produz desinformação” e “colocar em risco acesso e distribuição gratuita de conteúdo na internet”. Outra ressalva refere-se a “dar amplos poderes a um órgão governamental para decidir o que os brasileiros podem ver na internet” e “trazer sérias ameaças à liberdade de expressão”. Documentos do site também citam o risco de prejudicar anunciantes brasileiros. Mas a atuação da gigante da tecnologia não parou por aí, conforme aponta levantamento da NetLab, vinculada à UFRJ. Os pesquisadores viram indícios de que o Google passou a priorizar nas buscas os materiais contrários à regulação. Termos relacionados ao PL apresentavam, em melhor ordem de ranqueamento, conteúdos contrários à proposta, priorizando os textos com “PL da Censura” no título.

No dia da votação, Arthur Lira classificou como um “horror” a retaliação orquestrada pelas plataformas contra a proposta. “Poderíamos ter aprovado esse projeto após a urgência ser decidida, na terça-feira [25 de abril]. Mas nós demos oito dias para que as big techs fizessem o horror que fizeram com a Câmara. Eu não vi ninguém aqui defender a Casa. Num país com o mínimo de seriedade, Google, Instagram, Facebook e Tik Tok, todos os meios tinham que ser responsabilizados”, disparou. A atuação das gigantes da tecnologia também gerou críticas do relator do projeto, que a classificou como “ação suja” para sabotar as discussões. “Nunca vi tanta sujeira em uma disputa política. O Google, por exemplo, usa sua força majoritária no mercado para ampliar o alcance das posições de quem é contra o projeto e diminuir de quem é favorável. Os Sleeping Giants tiveram redução brutal de alcance no Twitter da noite para o dia”, acusou. “O conteúdo foi publicado no Youtube e permaneceu disponível na plataforma de vídeos, mas sem que a gente conseguisse impulsionar”, confirma Humberto Ribeiro, diretor jurídico dessa organização que combate discursos de ódio e desinformação na internet. “Lutamos com espeto de pau, enquanto essas empresas têm todas as armas ao seu dispor”, afirma Ribeiro. “Estamos falando de três ou quatro plataformas que dominam mais de 90% do tráfego de informações digitais globais. A manipulação de algoritmos, de publicidade e de engajamento tem potencial para produzir sentimentos de indignação, de raiva, de ódio.”

“Se a proposta já estivesse em vigor, talvez já tivéssemos um mecanismo para verificar se houve violação dos direitos dos usuários” Iná Jost, pesquisadora do
InternetLab função falsos

Ameaça de multa

Para a advogada Iná Jost, coordenadora da área de liberdade de expressão do InternetLab, centro independente de pesquisa, o fato de o Google se posicionar não é, em si, um problema. “O problema é quando isso não fica claro para o usuário”, destaca. “Se a plataforma interfere na ordem dos sites que vão aparecer como resultado da busca, por exemplo, o usuário não tem como saber.” Segundo ela, “se a proposta em tramitação no Congresso já estivesse em vigor, talvez já tivéssemos um mecanismo quase automático para verificar se houve ou não violação dos direitos dos usuários”. Nesse caso, as empresas teriam que produzir relatórios sobre o funcionamento do algoritmo e informações sobre a métrica de distribuição e de priorização, explica a pesquisadora.

O governo, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, órgão ligado ao Ministério da Justiça, reagiu e confrontou a empresa ao aplicar medida cautelar obrigando-a a tomar medidas para assegurar a isonomia nas discussões. O Executivo apresentou uma série de recomendações que a companhia terá de cumprir sob o risco de pagamento de multa de R$ 1 milhão/hora por descumprimento. Entre as determinações, está a obrigação da plataforma de se abster de censurar posições divergentes das da empresa. O Ministério Público Federal de São Paulo também determinou que as empresas, em especial a Google e a Meta, se manifestassem em 10 dias sobre a possível violação aos direitos dos usuários. No Congresso, o assunto provocou dissenso entre deputados que representam os evangélicos. Entre os mais conservadores, houve uma ofensiva para reverter votos, inclusive da bancada do Republicanos, que votou em peso com Lula no requerimento de urgência. Patrocinados pela Frente Parlamentar Evangélica, esses congressistas passaram a defender que a regulação teria impacto na liberdade religiosa – argumento contraditado por outros parlamentares evangélicos. “Quem está dizendo isso ou está desinformado ou agindo com má intenção”, resumiu o deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSol-RJ).”Lamento que determinadas lideranças evangélicas no Parlamento estejam pouco preocupadas com a democracia, com as nossas escolas, com as nossas crianças e adolescentes. E ainda dizendo que a liberdade religiosa será interditada”, apontou.
Colaborou Gabriela Rölke