Cultura

A infância de Van Gogh

Nos 170 anos de nascimento do famoso pintor holandês, ISTOÉ visita a casa onde ele nasceu e passou a infância, na pequena cidade de Zundert, na Holanda, e relata detalhes de seu cotidiano familiar

Crédito: Divulgação

RUA MARKT, 29 O prédio mais famoso do vilarejo na fronteira com a Bélgica: atração pouco frequentada por turistas (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Famoso por seus morangos, o pequeno município de Zundert fica a 126 quilômetros de Amsterdã, Holanda. Ao longo da estrada perfeita na fronteira com a Bélgica há um claro indício de que muita coisa mudou nessa cidade fundada no século 12: os tradicionais moinhos deram lugar a hélices gigantes, cujos fortes ventos capturados não moem mais grãos, mas produzem energia eólica. Aqui os turistas aparecem apenas uma vez por ano, para assistir à parada de Bloemencorso, quando carros alegóricos repletos de flores disputam espaço nas ruas apertadas do vilarejo. Fora isso, os raros visitantes estrangeiros, como eu, buscam o único local realmente importante da cidade: a casa onde viveu um dos maiores artistas da história.

Vincent van Gogh nasceu em 30 de março de 1853, exatos 170 anos e 16 dias antes da minha chegada ao número 29 da Rua Markt. Nesse endereço, a jovem Anna Cornelia Carbentus deu à luz o seu filho mais famoso. Seu marido, o pastor Theodorus, da Igreja Reformada Holandesa, não estava no quarto no momento do parto: rezava na igreja localizada nos fundos da casa, que continua lá, intacta. O jardim que a cerca, porém, não exibe mais apenas flores: desde o século 19 há um cemitério que abriga corpos de familiares menos conhecidos. Uma placa na entrada avisa que Vincent van Gogh está enterrado sob a lápide 32. Algo está errado: lembro que o corpo do famoso pintor descansa no cemitério de Auvers-sur-Oise, no norte da França, ao lado do irmão, Theo. Quem seria o tal Vincent, então? A vítima de uma trágica coincidência. No mesmo dia em que o pintor nasceu, mas um ano antes, 30 de março de 1852 portanto, Anna Cornelia Carbentus dava à luz um bebê que não sobreviveu ao parto. Ela também o batizara de Vincent — é o natimorto que jaz indicado na lápide em questão.

 

REJEIÇÃO Imagem de Vincent van Gogh recriada por computador: homem atormentado (Crédito:Divulgação)
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Abrir a porta da casa onde Van Gogh nasceu é como adentrar um santuário. Não é uma habitação espaçosa, ainda mais quando lembramos que, além de Theo e Vincent, havia outras três irmãs, Anna, Elisabeth e Willemien. Há poucos objetos remanescentes, apesar de o local ser classificado como um museu. Uma escrivaninha aqui, uma mesa ali. Em outra sala, a projeção audiovisual nos lembra que a saga terminaria mal: um ano depois de Vincent enlouquecer, atirou contra si mesmo, morrendo em seguida, Theo sucumbiria à depressão. Apesar de não estarem enterrados aqui, é possível sentir a presença de ambos. Deve-se isso a uma escultura, ao lado do portão. O belo dia de sol em que estive lá inevitavelmente me obriga a imaginar os dois irmãos correndo pelo gramado, crianças que nunca sonharam com o papel que o destino lhes reservava no panteão da história da arte. A placa lembra que os meninos frequentavam a missa aos domingos, para ouvir a pregação do pai. Não menciona se no jardim havia girassóis, mas não há dúvidas de que ali estavam plantadas as primeiras flores que Vincent pousou os olhos.

Ele não foi uma criança feliz. Aos onze anos teve de ser enviado a um internato em Zevenbergen, a 24 quilômetros dali, onde passou dois anos implorando à mãe para voltar para casa. Ela não apenas não atendeu ao filho, como lhe transferiu para outra escola ainda mais distante, em Tilburgo. Por ironia, foi lá que ele teve as primeiras aulas de arte, com Constantijn C. Huysmans, artista que acabara de voltar de uma temporada em Paris. Em 1868, aos quinze anos, retornou ao lar.

No ano seguinte o seu tio avô, também Vincent, conseguiu para ele um emprego em Haia, cidade de sua mãe. Foi promovido e viajou para Londres, na Inglaterra, onde viveu o período mais feliz de sua vida. Mas foi curto: apaixonado pela jovem Eugénie Loyer, filha da dona da pensão onde morava, declarou-se a ela e foi rejeitado. O fracasso pode ter dado início ao quadro depressivo que o acompanharia pelo resto da vida. Mudou-se para a casa de um amigo em Cuesmes, na Bélgica. Foi quando Theo, ao ver os desenhos que recebia nas correspondências, sugeriu que ele seguisse a carreira artística. Vincent aceitou o convite e passou a tentar viver exclusivamente de sua arte. Vendeu um único quadro em vida, o Vinhedo Vermelho, sete meses antes de sua morte, em 29 de julho de 1890, aos 37 anos. Em 1990, sua obra Retrato de Dr. Gachet ultrapassou os US$ 82 milhões em um leilão em Londres.