Cultura

Sombras do passado

Em Por Lugares Devastados, continuação do sucesso O Menino do Pijama Listrado, John Boyne revela o destino de Gretel Fernsby — a sua marcante personagem que luta para fugir das lembranças do nazismo

Crédito: Divulgação

AMIZADE O Menino do Pijama Listrado: livro vendeu onze milhões de cópias e ganhou adaptação para o cinema (Crédito: Divulgação)

Não somos judeus. Somos o oposto deles.” O comentário de Gretel Fernsby, aos onze anos, dá uma dimensão da ideologia preconceituosa disseminada pelo regime nazista entre as crianças alemãs durante a Segunda Guerra. A fala não é real, mas poderia ser: a frase foi pinçada de uma das personagens de O Menino do Pijama Listrado, best-seller mundial do irlandês John Boyne, publicado em 2006 e adaptado para o cinema dois anos depois. Não foi a única releitura do livro: o sucesso da obra original foi tão grande que rendeu versões para teatro, balé e serviu até de inspiração para o libreto de uma ópera.

Na frase inicial desse texto, Gretel discute com Bruno, seu irmão três anos mais novo. Ele e o menino judeu Schmuel são os protagonistas de uma trágica e emocionante história sobre o Holocausto, em que os dois garotos desenvolvem uma amizade separada à força pelos arames farpados e eletrificados de um campo de concentração. Boyne, cujo lançamento mais famoso vendeu onze milhões de exemplares e lhe rendeu dois Irish Book Awards, publica agora, seis anos depois, a continuação dessa primeira obra: trata-se de Por Lugares Devastados, e traz Gretel novamente, dessa vez como protagonista. Ela é uma senhora de 91 anos que vive em Londres, na Inglaterra, e luta para esquecer a infância passada em meio a uma família de nazistas. Apesar do trauma, sua vida parece fadada à tranquilidade — até que uma família de judeus se muda para o seu prédio, no apartamento abaixo ao seu. Ela e o filho do casal recém-chegado, Henry, de nove anos, começam uma improvável amizade. Um prosaico episódio lhe colocará em uma encruzilhada: se afastará ou ajudará o garoto, revelando ao mundo sua verdadeira identidade e seu vergonhoso passado familiar?

OBSESSÃO John Boyne: irlandês estudou o Holocausto durante duas décadas (Crédito:Divulgação)

Culpa e cumplicidade

Mestre da ficção histórica, Boyne cria uma situação em que qualquer pessoa é obrigada a se perguntar: “e se fosse com você, o que faria?”. Seu novo livro trata, portanto, de culpa e cumplicidade, e mostra como eventos históricos continuam a influenciar o mundo décadas depois de terem ocorrido. O autor se interessou pela Segunda Guerra aos quinze anos, por intermédio de escritores judeus como Primo Levy e Elie Wiesel. Começava ali uma obsessão pelo tema. Estudou o assunto a fundo durante duas décadas — até escrever O Menino do Pijama Listrado. O autor imaginara que a sequência seria escrita apenas quando ficasse mais velho e seria o trabalho derradeiro de sua carreira. Devido ao isolamento causado pela pandemia, no entanto, o projeto foi antecipado. Em fevereiro de 2022, após o lançamento de The Echo Chamber, Boyne concebeu a nova narrativa sobre a família Fernsby. Ela começa em Paris, na França, passa por Sidney, na Austrália, até culminar em Londres. Uma prova de que a culpa pode durar uma vida inteira, não importa o lugar.

Adolescente retrata em desenhos a vida em um campo de concentração

EM CORES Chegada dos soldados norte-americanos: a expressão significa “nós somos livres” (Crédito:Divulgação)

Thomas Geve tinha treze anos quando começou a desenhar seu cotidiano em Auschwitz-Birkenau, na divisa da Alemanha com a Polônia, o maior de todos os campos de concentração nazistas. Nas câmaras de gás do local foram mortos mais de um milhão de judeus. O garoto registrou cada hora de sua rotina, as atividades programadas para ele e sua família e as torturas psicológicas às quais os prisioneiros eram submetidos. Mas houve também a documentação do alívio, quando os soldados norte-americanos o libertaram de Buchenwald, campo para onde havia sido transferido, em 11 de abril de 1945. Tinha então quinze anos e sobrevivera durante 22 meses aos horrores da vida em cativeiro. Seus rudimentares rabiscos originais não sobreviveram, mas as memórias que o marcaram sim: mais de 80 imagens foram reconstruídas com lápis coloridos nos versos de cartões da SS, a guarda pessoal de Adolf Hitler. O resultado, acompanhado por um relato emocionante, integra o livro O Garoto que Desenhou Auschwitz — Uma Poderosa História Real de Esperança e Sobrevivência. A obra inspira sensações híbridas: a pureza do traço infantil é um duro contraste em relação aos temas que eles descrevem. Há detalhes perturbadores, como a relação dos produtos que faziam parte da alimentação ou os detalhes dos uniformes dos algozes. É estranho ver a brutalidade do nazismo sob o ponto de vista de uma criança, que parece não compreender a seriedade do que relata. Mas o relato é importante para que a história seja revisitada — e nunca mais repetida.

HORROR As câmaras de gás em Auschwitz: o garoto desenhista passou 22 meses em cativeiro

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Felipe Machado