Rebelde com causa
Lutando contra toda forma de preconceito desde a adolescência, Rita Lee foi muito mais que a rainha rebelde do rock brasileiro — a artista deixa um legado de contestação, irreverência e talento, qualidades que se mostram cada vez mais necessárias na sociedade brasileira
Rita Lee entendeu ainda criança que o privilégio masculino era uma injustiça. Por isso exigia participar em pé de igualdade das corridas nos carrinhos de rolimã dos garotos na Vila Mariana, em São Paulo. Usou a música para protestar contra a ditadura militar, tanto que foi a artista mais censurada pelo regime ao “insurgir contra o pátrio-poder, negativismo por subverter os padrões conservadores e induzir a juventude ao movimento hippie”, entre outras justificativas. Rita Lee se insurgiu até contra a própria imagem perante o público, ao assumir sua dependência química, da qual se livrou somente com o nascimento da primeira neta, em 2005. Também marcou posição contra o preconceito de gênero e qualquer outra forma de discriminação, que combateu ao longo dos quase 60 anos de carreira, mais de 600 músicas gravadas e 55 milhões de discos vendidos. Mais do que isso: viveu o que pregava.
Virou vegetariana para mostrar sua repulsa contra crueldade animal, bem antes da onda vegana tão comum nos dias de hoje. Quando cansou dos palcos, foi morar em um sítio isolado e viver seu amor pela família e pelos bichos na prática. É por tudo isso que o Brasil precisa de mais artistas e seres humanos como a cantora, compositora, atriz, ativista e escritora Rita Lee Jones de Carvalho, que faleceu na segunda-feira, 8 de maio, após um ano e meio de luta contra câncer no pulmão — o qual batizou, bem ao seu estilo irreverente, de “Jair”, em referência ao ex-presidente.
Rita Lee praticou o empoderamento feminino e invadiu territórios dominados por homens muito antes dessa expressão existir. Aos 15 anos, formou um trio vocal com duas amigas, as Teenage Singers, quando uma banda de meninas era algo impensável. Da mescla com um trio masculino, outra afronta, nasceu o Six Sided Rockers. O grupo acabou em 1966, mas ela manteve a parceria com os irmãos Arnaldo Baptista e Sergio Dias e marcou posição como frontwoman para formar a banda que revolucionaria o rock brasileiro: os Mutantes. “Não nasci para casar e lavar cuecas. Quando entrei para a música, percebi que a ‘tchurma dos colhões’ reinava absoluta, ainda mais no rock. ‘Oba’, dizia eu, ‘é aqui mesmo que vou soltar a franga e, literalmente, encher o saco deles’. Depois que provei a mim mesma que era capaz de conseguir as mesmas vitórias, sosseguei um pouco o facho”, disse.
Em julho de 1967, enquanto Elis Regina liderava a famosa “Marcha Contra a Guitarra Elétrica” (ou “Passeata da MPB”) para defender a “música brasileira contra a americanização”, Rita Lee aumentava o volume na contramão. Em outubro, o mesmo Gilberto Gil que participara do protesto cedeu à “americanizada” roqueira e convidou os Mutantes para ser sua banda de apoio na canção Domingo no Parque, sucesso absoluto no 3º Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record. A jovem Rita já mostrava que ninguém iria dizer a ela como se comportar — nem qual instrumento poderia ou não tocar.
A desobediência à pureza da MPB não ganhou o festival, mas foi o marco inicial da Tropicália, movimento cultural que apagou a maioria das linhas fronteiriças das artes no País. A revolução de costumes estava disparada: Rita partiu para a provocação ao se apresentar com um vestido de noiva emprestado por Leila Diniz, atriz que à época representava a nova mulher, livre, desbocada, engajada e, claro, repudiada pela sociedade. Não satisfeita, Rita e os Mutantes se juntaram a Caetano Veloso no ano seguinte, no 3º Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, quando apresentaram a sugestiva É Proibido Proibir. Receberam uma vaia monumental no teatro da PUC, em São Paulo, que levou ao famoso pito de Caetano no público: “Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada”. Além do mesmo vestido de noiva, Rita ainda colocou uma falsa barriga de grávida — para ironizar e incomodar a “tradicional família brasileira”.
Em razão dessas rejeições, Rita se sentia mais acolhida no Rio, onde sua figura na TV fazia sucesso. Mas os cariocas não ligavam tanto para os Mutantes, musicalmente falando, e ela era conhecida por ser paulistana. Era algo tão marcante que Caetano Veloso a homenageou em uma de suas mais famosas canções, Sampa: “Ainda não havia para mim Rita Lee/A tua mais completa tradução”. A revista Fatos e Fotos, em 1971, a descreveu como “meio (paulista) quatrocentona, meio hippie”. E emendava: “Rita é isto. Calça Lee, jaqueta de segunda mão e uma sacola muito viajada, puxada pela cordinha. Quando canta, sua voz frágil não tem grande importância. O que funciona é a imagem, sem retoques, do franjão loiro e do nariz sardento. Seu sorriso aberto é a mola mestra do sucesso à parte que ela às vezes contraria para poder viver. (…) Rita é na verdade uma tremenda simpatia. Ela é, e fica sendo, Rita — a garota Lee”.
O instinto provocativo foi ficando mais aguçado, como ela mesma cantou em Jardins da Babilônia: “Pra pedir silêncio eu berro/ pra fazer barulho eu mesma faço”. Em festival no ano seguinte, 1972, os Mutantes apresentaram Ando Meio Desligado, batizada em referência ao efeito da maconha. Na contracapa do álbum, o trio posou nu, sob cobertas, em uma cama. Era demais para o tradicionalismo brasileiro: Flavio Cavalcanti, popular apresentador de TV na época, quebrou o disco diante das câmeras. O protagonismo de Rita incomodava até os colegas de banda. Quando já iniciava uma carreira solo paralela, ainda em 1972, Arnaldo Baptista, marido da cantora à época, disse que ela não tinha “calibre instrumentista para a nova fase progressiva-virtuose” do grupo e a dispensou. “Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei Danny [sua cadela] e adiós. No meio da estradinha da Cantareira, a caminho de São Paulo, parei no acostamento e chorei, gritei, descabelei, xinguei feito louca”, contou, em sua popular autobiografia.
Sua carreira solo acomodou hits de teor feminista em sequência. Só que mensagens dessa natureza não eram vistas com ternura na época. Trechos como “Um belo dia resolvi mudar/ E fazer tudo o que eu queria fazer/ Me libertei daquela vida vulgar/ Que eu levava estando junto a você” não passavam batidos. Em agosto de 1976, grávida do primogênito Beto Lee, Rita foi presa em sua casa por “uso e posse de maconha”, o que ela negou até o final da vida. Para que servisse “de exemplo à juventude”, foi-lhe aplicada a pena de um ano de prisão domiciliar. Ela só podia sair de casa para fazer shows com autorização judicial.
Da prisão à paixão
“Fiquei uma semana no Deic, um mês no hipódromo feminino e um ano em prisão domiciliar. A semana no Deic foi o pior momento de todos. Havia um carcereiro que entrava na cela, mijava no chão e jogava baldes de cocô para que ninguém pudesse sentar. No hipódromo, a coisa foi mais branda, apesar dos interrogatórios diários. A vontade de fugir de Alcatraz era grande, mas minha barriga era maior. Até hoje, as pernas balançam quando vejo um camburão”, disse, em entrevista em 2007. Prisão, maternidade, perseguição eram armas do conservadorismo carrancudo que Rita combatia sempre com talento e bom humor. Nem sempre bom, por vezes ácido, irônico e sagaz, mas nunca cruel. Desta vez sua resposta foi uma guinada de 180º em suas assinaturas musicais e poéticas. Ficava um pouco de lado a roqueira rebelde e entrava em cena a mãe amorosa e apaixonada pelo marido Roberto de Carvalho, com quem manteve relacionamento de 46 anos. Aos poucos, sua música ficou mais leve, mais suave, mais pop — e aí ela passou a incomodar os roqueiros tradicionais.
Nem assim para agradar a família, que esperava que seguisse os passos que haviam sonhado para ela. O pai, o dentista Charles Jones, descendente de norte-americanos, lamentava em entrevistas: “Poderia ter uma profissão que desse a ela o direito a aposentadoria por tempo de serviço, por velhice, e não dependesse dos caprichos do gosto do público”. Aos 42 anos, em 1990, prestes a se separar discretamente de Roberto de Carvalho por quatro anos, depois de terem gravado nove álbuns, ela usou a mídia para provar que ser vulnerável não era sinal de fraqueza, muito pelo contrário. Disse que não tinha mais interesse em chocar (não tinha mais vontade, por exemplo, “de jogar LSD em caixas d’água de caretas”), que não precisava mais de drogas para encarar a realidade e que vinha fazendo análise junguiana para ter uma vida mais leve. Sobre ser (super)mãe de três meninos, a mesma exposição frágil: “Ser mãe é segurar a barra do filho. Ser filho é se soltar da barra da mãe. Acho que como mãe, sou uma ótima irmã”. E se dizia “rejuvenescida por uma lipoaspiração”.
Outros ritmos
Rita, no entanto, continuava bebendo e usando drogas. Veio a crise no casamento e ela mais uma vez respondeu musicalmente. Mudou de estilo e passou a trabalhar em um amplo caldeirão de gêneros: rock, psicodelia, MPB, bolero, pop, música eletrônica e bossa nova, para muitos um estilo que caberia bem em sua voz suave e sofisticada. Sobre as mudanças de direção, disse ser um para-raio do inconsciente coletivo, que não sabe cantar nem tocar nada e se mete à besta adepta da “autoesculhambação”, mas que, ao mesmo tempo, não liga mais para críticas de terceiros. “Como tropicalista da gema, estou cagando e andando para quem me detesta e continuarei fazendo o que me der na telha”, completou.
Foi o período de conscientização e de início de ativismo pela causa animal, que marcou o final de sua vida. Em 2002, durante o programa Saia Justa (GNT), onde eram apresentadoras, Rita Lee e Marisa Orth conversaram sobre o caso de um canibal alemão que colocou anúncios em jornais buscando candidatos. Enquanto Marisa ficou horrorizada com a proposta, Rita deu de ombros e disse não ver diferença entre comer carne de bicho e de humanos. Ainda colocou a mão na coxa da atriz e perguntou: “Se eu posso comer a pata de uma vaca, por que não poderia comer uma fatia dessa ‘coxona’?”. À época ela tentava se livrar da dependência química, mas só conseguiu em 2005, com o nascimento da primeira neta, Izabella, filha de Beto Lee: “Sei que essas doenças não têm cura, o lance é ficar no controle da situação, o que é bastante difícil, principalmente com álcool, que é superfácil de descolar. (…) É um clichê na vida de roqueiro encher a cara, ser preso, fazer escândalo, morrer de overdose, entrar e sair de hospício, virar doente terminal, ufa! Puxa vida, a única droga que uso hoje é Marlboro. Será possível que não vão me deixar em paz nunca?”.
Em 2012, aos 64 anos, no que foi anunciado como seu último show (ainda se apresentaria duas vezes nos meses seguintes), em plena apresentação ela se desentendeu com policiais que abordaram fãs no público que estariam fumando maconha. Desceu do palco direto para uma delegacia em Aracaju, Sergipe, onde assinou queixa de “desacato e apologia ao crime”. Era mais uma vez o enfrentamento da autoridade, que ela sempre combatera com amor. Mais uma vez foi essa sua resposta, e Rita e Roberto se recolheram em sítio no interior de São Paulo. Lá passava os dias escrevendo, cozinhando, pintando e cuidando dos animais de estimação, que costumava postar em redes sociais.
Da escrita veio Rita Lee: uma Autobiografia, concorrido e premiado livro de 2016, onde apresenta sua trajetória da única forma que conhecia, sem censura. De ter sido abusada quando criança à relação com as drogas, quase tudo está ali, escancarado. O restante ela escreveu durante o tratamento do câncer (o tal “Jair”), que foi diagnosticado em 2021, tido como curado ano passado e que a vitimou agora. A duas semanas do lançamento da sequência da autobiografia, programada para 22 de maio. A data não foi escolhida não ao acaso. Como comemorava o aniversário em 31 de dezembro, disse que não queria concorrência com o Réveillon e mudou por conta própria a data de nascimento para 22 deste mês, dia de Santa Rita de Cássia. A contestadora Rita Lee não se curvava nem diante do calendário.
Três discos para entender a rainha
Mutantes
Com os irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, ela formou a banda pioneira no experimentalismo no Brasil e colecionou fãs famosos pelo mundo, entre eles Kurt Cobain e Sean Lennon
Tutti-frutti
O novo grupo de Rita lançou Fruto Proibido e mudou o rock brasileiro, com clássicos como Agora só Falta Você, Ovelha Negra, o hino da cantora, e Esse Tal de Roque Enrow, com Paulo Coelho
Lança perfume
Ao se reinventar pela terceira vez, ela consolidou a carreira solo com um álbum que vendeu mais de um milhão de cópias. A canção-título tinha um fã especial: era a favorita do rei Charles III
Elis Regina
Anja da guarda de Rita Lee
Por Antonio Carlos Prado
A ditadura militar no Brasil foi repressora, sanguinária e falsa moralista. Ignorante e ridícula. Sobre Rita Lee, deixe-se de lado o quesito sangue porque ela quando presa não sofreu suplício físico, mas psíquico – o que, convenhamos, não atenua em nada a arbitrariedade. Todos os demais itens, no entanto, ficam valendo. Além disso, os ditadores escarneciam do sentimento de empatia, e seus puxa-sacos da polícia civil eram pessoas submissas. Eis a história a não ser esquecida:
No dia 24 agosto de 1976, com o general Ernesto Geisel no Planalto costurando a abertura política, a polícia de entorpecentes (esse era o seu nome ridículo, mas, pior ainda, atendia também por “tóchico”) foi à casa de Rita Lee, em São Paulo, às sete horas da manhã. Bairro de classe média: Vila Mariana. Motivo da prisão: Rita fumava maconha e em sua casa havia 300 gramas da “dita cuja erva”. Mais: roqueiros e hippies, para os ditadores e sabujos, eram subversivos.
Agora, a inesperada solidariedade. Levada à cadeia (delegacia e depois presídio do Hipódromo), Rita podia esperar pela visita até do papa, menos pela visita de Elis Regina. Elis virava-lhe a cara nos corredores da extinta TV Record e criticava-a pelos instrumentos elétricos. Nos momentos difíceis de uma pessoa revela-se o caráter de outra pessoa, e revelou-se assim o firme e excelente caráter de Elis. Ela foi à delegacia, filho pequeno de mãos dadas, e começou a exigir que o delegado a deixasse ver a presa. Fez, com toda a razão, um escarcéu. Quando Rita Lee a viu, tomou um susto: Elis! A que não gosta de mim! E imaginou-a como sendo a “Nossa senhora dos roqueiros”. Ao ver Rita magérrima, Elis mandou os policiais comprarem comida, deu dinheiro, exigiu nota fiscal e troco. Obrigou-os a chamar um médico. Mandou o tempo todos nos agentes e ameaçou reunir a imprensa caso não a obedecessem ou maltratassem Rita. Os policiais, amedrontados, não deram um pio.
Rita foi condenada ao final do processo a cumprir medidas cautelares em casa e pagar multas. Assim, ela foi também pioneira na luta que se desenrolou e ainda se desenrola no País para que o usuário de drogas não receba as mesmas sentenças severas dadas, essas sim de forma merecida, aos traficantes.
Foi na visita que Elis soube que a colega presa (ficaria ao todo mais de um mês na cadeia) estava grávida do filho Beto (Roberto Lee de Carvalho). Essa mulher de fibra e tecida de justiça e coragem foi Elis. Essa mulher de fibra e tecida de justiça e coragem foi Rita. Os ditadores e seus adulões, esses foram qualquer coisa.