Filósofas insurgentes

O mercado editorial lançou, num lapso de tempo relativamente curto, duas obras incontornáveis para se (des) pensar e intervir no mundo ou até mesmo decretar o fim deste mundo para que outro seja erguido. Trata-se de Homo modernus: para uma ideia global de raça, de Denise Ferreira da Silva, e Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, de Sueli Carneiro, publicados, respectivamente, pela Editora Cobogó e Zahar. Gestados no campo da filosofia política, ambos os livros funcionam como uma caixa de ferramentas com força diamantina para o cumprimento da tarefa que eles nos convocam e para a qual estão absolutamente implicados.

As duas filósofas negras vão além do louco de Nietzsche (a razão não só produziu um ser humano limitado, como ele reconhece, mas instituiu sujeitos diferentes diante da universalidade, dizem Denise e Sueli) e nos ensinam belamente, como exímias mestras que são, que é possível aproximar a filosofia da vida, que é plausível renová-la com aquilo que há de mais pulsante e perturbador no nosso mundo. Tanto em Homo modernus como em Dispositivo de racialidade sentimos, feito hipocondríacos, que as cordas da reflexão podem até vibrar, mas não alcançarão o afinamento necessário se as cordas da ação prática, extraídas do chão do mundo vivido, não forem dedilhadas.

Ao denunciarem a teoria ocidental, uma espécie de J’accuse…! de Émile Zola, Denise e Sueli se aproximam de um oásis de referências negras (Charles Mills, Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Cedric J. Robinson, Saidiya Hartman…), demonstrando o compromisso que têm com uma plêiade de figuras negras insurgentes que ousaram transgredir.
Se uma caixa de ferramentas se presta ao útil (e não ao utilitarismo), os livros estão à altura do nosso cotidiano, fraturado pela mixagem do fascismo, do supremacismo branco e do aniquilamento dos terrivelmente outros, produzidos no interior dos princípios da igualdade e liberdade universais.

As obras de Sueli Carneiro e Denise Ferreira da Silva ensinam que é possível aproximar a filosofia da vida e renová-la

Como sabemos, a modernidade garantiu sua existência fazendo circular a diferença racial e cultural, o que nos faz pensá-la não mais em termos de incompletude ou desvio ético, mas de impossibilidade. Depois da acusação, Denise e Sueli nos levam à deserção, que nos leva à criação de outros sistemas de representação capazes de ativar a nossa força para imaginar mundos e reivindicar outro tipo de impossível: aquele que a razão moderna tentou soterrar, mas sempre se insurge, perturbando os pilares que lhe deram sustentação. Não tenho dúvidas que os dois livros recém publicados são nitroglicerina pura, caminhões-tanque estacionados nas pilastras desse edifício moderno, que embora estejam avariadas, ainda se mostram espessas. Que entrem, assim, em combustão!