Cultura

A incrível história da santa africana

A biografia de Rosa Egipcíaca parece uma obra de ficção: ela chegou ao Brasil no século 18 e viveu anos como escravizada, mas passou a ser venerada pelos fiéis até que a Inquisição portuguesa a condenou

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VISÕES Rosa Egipcíaca: desafio ao discurso da Igreja levou a sua ruína (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

A vida de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz daria uma excelente ficção no estilo do realismo fantástico, mesmo tendo ocorrido séculos antes da criação dessa escola literária. Para contar sua história, o antropólogo Luiz Mott dedicou quatro décadas de sua vida. O resultado é o competente relato Uma Santa Africana no Brasil, que chega às livrarias poucos meses depois de a personagem ser homenageada pela escola Unidos do Viradouro, de Niterói, vice-campeã do carnaval carioca. O ponto de partida dessa vida extraordinária é o litoral africano, mais especificamente o Golfo do Benim, em 1725. Aos seis anos, a garota da etnia Courana embarcou à força para o Rio de Janeiro, mais uma entre os cinco milhões de seres humanos que foram arrancados de suas aldeias nativas e vendidos como mercadoria no Brasil ao longo de mais de quatro séculos de escravatura.

Foi logo vendida para trabalhar em Minas Gerais, onde a exploração de minérios e pedras preciosas absorvia boa parte da mão de obra que chegava da África. A pé, levou doze dias para percorrer o caminho entre a capital carioca e a Serra da Mantiqueira. Chegando lá, foi recebida por sua nova proprietária, a mãe do orador e poeta Frei José de Santa Rita Durão. Na fazenda em que vivia, única mulher entre setenta escravos, tornou-se prostituta pelos vinte anos seguintes. Acumulou bens e joias, mas também inúmeros problemas de saúde. Por ignorância, oportunismo ou ambos, atribuía os desmaios aos “sete demônios” que haviam tomado seu corpo. Por volta de 1750, mudou de vida. Vendeu parte do que tinha, doou o que restou aos pobres e entregou sua alma nas mãos do padre português Francisco Gonçalves Lopes, exorcista conhecido pelo apelido de “Enxota Diabos”. Em caravana, Rosa e o Padre saíram pelas cidades mineiras apresentando o exorcismo como espetáculo e arregimentando seguidores por onde passavam. Vivendo como beata, Rosa começou a ter visões e se autoproclamar divina.

Quando voltaram ao Rio de Janeiro, eram famosos. Ela mudou-se para o Convento de Santo Antonio, no Largo da Carioca, onde mandou construir uma capela. Passou a ser venerada por pobres e escravizados, mas também pelos senhores de engenho que acreditavam em seu discurso messiânico. Aprendeu a ler e a escrever, tornando-se a primeira escritora negra do Brasil e das Américas. Com o dinheiro arrecadado com a capela, ergueu a casa de recolhimento Nossa Senhora do Parto, para abrigar ex-prostitutas arrependidas, como ela. Sua vaidade enlouquecida, no entanto, foi sua ruína: passou a se proclamar “a maior santa do céu”, profetizou um dilúvio sobre o Rio de Janeiro e espalhou que daria à luz um novo messias, um menino Jesus mulato. As atitudes começaram a incomodar a Igreja, que lhe mandou para a prisão sob a acusação de heresia. Ela e o padre foram enviados para Lisboa. Ele logo assumiu os pecados, jogando a culpa sobre ela. Rosa, arrogante, não teve a humildade para se declarar arrependida. Foi condenada pelo tribunal da Inquisição, mas não à morte. Ela acabou falecendo de causas naturais aos 44 anos.

O autor Luiz Mott conheceu a história da personagem por acaso, quando pesquisava os arquivos da Torre do Tombo, em Portugal. “Achei sua trajetória fascinante e decidi me aprofundar na pesquisa”, afirma. “Demorei quase quarenta anos para descobrir como esse caso terminou. Isso só foi possível esse ano, quando encontrei seu atestado de óbito. Rosa morreu na cozinha, de morte natural, em 1771.” Mott elogiou a homenagem a sua biografada feita no carnaval carioca, mas decepcionou-se ao saber que ela ficou em segundo lugar, perdendo para o samba-enredo que celebrava a vida de Lampião. “Preferiram homenagear um criminoso a uma santa africana. Rosa foi forte, acolheu mulheres desamparadas, aprendeu a ler e escrever. Apesar de aspectos obscuros, ela é um exemplo para muitas mulheres negras.”

Cleópatra: etnia em discussão

Cleópatra, a rainha que era idolatrada no Egito e odiada por Roma, é uma das personagens mais retratadas da história do cinema. Apesar de ter sido homenageada em dezenas de produções, quando se menciona o seu nome a imagem que vem à mente invariavelmente é a da atriz Elizabeth Taylor, eternizada na produção de 1963. Uma série da Netflix pretende alterar essa percepção ao defender que a lendária governante estava longe de possuir os olhos azuis da atriz de Hollywood. Baseada em depoimentos de acadêmicos, a série documental produzida por Jada Pinkett Smith traz no papel da faraó a atriz negra Adele James.

POLÊMICA Adele James como Cleópatra: críticas do Egito (Crédito:Divulgação)

Em quatro episódios que alternam entrevistas e cenas recriadas por atores, Rainha Cleópatra levou o órgão oficial responsável pelo patrimônio histórico egípcio a se manifestar. “O secretário geral do Conselho Supremo de Antiguidades confirma que a rainha Cleópatra tinha pele clara e feições helenísticas (gregas)”, diz a nota. Mostafa Waziri explica que, por ser apresentado como documentário, a obra deveria se basear em fatos científicos. “A escolha da atriz é uma falsificação da história porque a série não é classificada como ficção. A rejeição passa longe de racismo étnico, com total respeito pelas civilizações africana e pelos nossos irmãos do continente que nos une.” Em resposta, a Netflix declarou que o foco era mostrar a personagem como uma mulher poderosa, independentemente da cor de sua pele: “Decidimos retratá-la com miscigenação para refletir as teorias sobre a natureza multicultural do Egito antigo”.