Somos todos Vini Jr.
Revolta de jogador contra ofensas racistas sofridas em partida do Campenato Espanhol tem repercussão mundial e dispara forte movimento contra a intolerância. No Brasil, especialistas apontam caminhos para uma discussão que não pode mais ser adiada
Por Thales de Menezes e Denise Mirás
O dia 21 de maio de 2023 já é um marco na luta contra a intolerância racial. O jogador brasileiro Vini Jr., 21 anos, estrela do maior clube de futebol do planeta, o Real Madrid, reagiu diante das arquibancadas do estádio do Valencia, de onde milhares de pessoas disparavam contra ele xingamentos de “macaco” e cantos racistas. O atleta avançou na direção dos torcedores, apontando vários que identificava como autores das agressões.
As imagens da situação humilhante e inaceitável imposta ao brasileiro ganharam o mundo. O atleta foi às redes sociais minutos depois para um desabafo contundente, criticando La Liga, a entidade que regula o Campeonato Espanhol. Ao enfrentar o poderio econômico de La Liga, escancarando o ranço fascista da entidade, ele abre um precedente para que outros jogadores negros possam tomar a mesma atitude diante de agressões semelhantes.
Pelo menos no esporte, a luta por inclusão e igualdade ganha uma nova dimensão a partir do episódio. A cúpula do futebol espanhol não esperava essa confrontação, depois de sustentada por décadas de privilégios econômicos e sociais que a conduziram a uma posição aparentemente inatacável. Javier Tebas, presidente de La Liga, agravou a situação da sua entidade ao responder o tweet de Vini Jr. com uma declaração execrável, querendo deslocar o jogador brasileiro para a posição de culpado nesse xadrez da intolerância.
Encastelado em sua condição privilegiada, Tebas demorou dois dias, bombardeado por manifestações vindas de todos os lugares do mundo para, visivelmente acuado, esboçar um tímido e mal-ajambrado pedido de desculpas, que divulgou numa entrevista à imprensa, sem uma declaração direta ao brasileiro.
Como resultado imediato, a seleção espanhola pode ser punida ao ser excluída da próxima Copa do Mundo, em 2026. O maior desafio a partir de agora, no entanto, é conseguir transformar essa indignação global em ações concretas contra um problema antigo e estrutural.
As agressões a Vini Jr. não começaram com a bola rolando em Valencia. E também não tiveram início na chegada do ônibus do Real Madrid ao estádio, quando o brasileiro e seus companheiros tiveram de atravessar a rua completamente tomada por milhares de torcedores locais já proferindo gritos de “macaco” para o jogador, numa antecipação do episódio lamentável que viria a seguir.
Na verdade, em dez jogos do Campeonato Espanhol, oito deles apenas neste ano, atos de torcedores contra Vini Jr. são investigados pela polícia espanhola. Antes da convulsão social disparada pelos atos do último domingo, o ataque mais covarde e repugnante contra Vini Jr. ocorreu fora de estádios, em janeiro. Um dia antes do clássico local entre Real e Atlético de Madri, um boneco com a camiseta do atleta brasileiro foi pendurado em uma ponte na capital, simulando o enforcamento do jogador.
Vini Jr. divulgou vídeo em suas redes sociais, no qual incluiu imagens de seus gols e um histórico de declarações racistas contra ele na imprensa espanhola. À câmera, ele declara:
“Enquanto a cor da pele for mais importante do que o brilho nos olhos, haverá guerra. Tenho essa frase tatuada no corpo. E tenho uma atitude na minha vida que transforma essa filosofia em prática. Dizem que felicidade incomoda. A felicidade de um preto brasileiro e vitorioso na Europa incomoda muito mais”.
As manifestações de solidariedade ultrapassaram o ambiente do futebol. No Rio de Janeiro, o Cristo Redentor teve suas luzes apagadas na noite de segunda (22), deixando sua silhueta negra como um símbolo de resistência.
No fim da tarde do dia seguinte, em São Paulo, centenas de pessoas levaram sinalizadores luminosos à frente do consulado espanhol, em imagens contundentes. O incidente deixou Brasil e Espanha bem próximos de um impasse diplomático.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, esboçou a intenção de exercer o princípio da extraterritorialidade para aplicar a lei brasileira em outro país, mas abriu mão da iniciativa com a notícia de que a polícia espanhola havia detido supostos autores de ofensas ao jogador.
Dennis de Oliveira, professor de jornalismo da USP e autor do livro Racismo Estrutural: Uma Perspectiva Histórico-Crítica, lembra que o mundo vê o crescimento do nazifascismo “e o Vinicius representa o intolerável para essa extrema-direita: imigrante, negro, africano, latino-americano”. O comportmento está presente no dia a dia. Por isso, é preciso exigir medidas de autoridades, deixando claro que racismo é crime e punível, além da educação desde a primeira infância, mostrando respeito à diversidade.
O antropólogo Roberto da Matta diz que existe uma memória enlouquecida, “fascistoide mesmo”, contra diferenças. “Um mundo sem diferenças é inexequível, mas vemos como o preto é atingido, com o racismo levado a limites extremos.” Na opinião de DaMatta, “a Espanha tem um contexto próprio, do mundo ibérico, de autoridade. Teve os mouros expulsos na Reconquista espanhola, passou pela guerra civil e pela sangrenta ditadura do generalíssimo Franco, até a morte dele, em 1975. Assim como Portugal teve Salazar”.
Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, lembra que a Espanha estará na presidência rotativa da União Europeia em julho. “É um bom momento para a UE assumir instrumentos de combate ao racismo, à xenofobia”, diz o professor, que ressalta: “Brasileiros são hostilizados não apenas na Espanha”.
No Brasil, há avanços, como a queda da “injúria racial”, agora tipificada como crime de racismo, mas a questão é de toda a população, como ficou explícito na Conferência da ONU em Durban, em 2001, quando a escravatura foi considerada crime contra a humanidade — e por isso sem prescrição.
O Brasil foi um dos principais formuladores do documento tirado dessa conferência: a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015 a 2024), uma espécie de pacto global, na definição de Luciana Mello, especialista em Relações Internacionais. “Foi a primeira vez que temas como racismo e intolerância religiosa tiveram espaço e visibilidade no cenário internacional, com propostas de ações e políticas públicas. Houve desdobramentos no Brasil, como a criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), com status de ministério.
Giovanni Harvey, especialista em projetos de políticas públicas e diretor executivo do Fundo Baobá para a Equidade Racial, foi vice-secretário da SEPPIR em duas gestões e diz que a delegação brasileira na Conferência de Durban foi das maiores, com José Gregori, ministro dos Direitos Humanos de FHC à frente. “O enfrentamento ao racismo foi implantado por Lula com a criação da SEPPIR em 2003”, diz.
Primeiro foi preciso explicitar que não há contradição entre as ações afirmativas de igualdade racial e as chamadas políticas universais, e que era preciso garantir acesso a todos. Vieram o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado no Congresso depois de dez anos; as cotas em universidades, em 2012, e nos concursos públicos, em 2014; e os direitos trabalhistas de empregados domésticos, em 2015. Hoje, as ações estão sendo restabelecidas com Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial.
Para José Vicente, fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmeiras, sociólogo e doutor em Educação, o futebol tem alto grau de motivação para promover mudanças de comportamento, crenças e valores na sociedade, mundialmente. “Vamos ver como instituições e patrocinadores vão se comportar, se haverá punições que mexam no bolso”, observa o professor.
“Aqui, temos sete ministros negros, jovens negros formam 50% do elenco das novelas da Globo, que tem no ar três novelas com protagonistas negros… O imponderável há cinco anos. E nesta terça-feira (23), o Conselho Universitário da USP aprovou cota de 20% para professores negros e todos os concursos de funcionários. A PUC de São Paulo já tinha aprovado cota de 37% no caso de professores. O Brasil está em transformação.”
Sinais de mudança
O País precisa dessas mudanças. O noticiário sobre atrocidades cometidas contra negros e pobres parece inesgotável. Desde o ataque de uma mulher a dois entregadores do iFood em bairro nobre do Rio, usando a guia de seu cachorro para dar “chicotadas”, a um cruel assassinato a pancadas cometido por seguranças do Carrefoiur em Porto Alegre, filmado por outros funcionários do supermercado.
No ano passado, o vereador paulistano Camilo Cristófaro declarou durante sessão da Câmara Municipal: “Não lavar a calçada… é coisa de preto, né?”. Ele admitiu a fala racista e não foi punido. Outro caso teve um político como vítima. O deputado federal Orlando Silva estava num restaurante em São Paulo e um frequentador tentou expulsá-lo, aos gritos de “Aqui não é o seu lugar!”.
Como sinal de mudança, na última terça-feira (23) o Superior Tribunal Militar condenou a um ano de prisão o coronel da Aeronáutica Takeshi Matsuda, por injúria racial a uma soldado negro que cursa Economia. “Um crioulo fazendo Economia?”, foi a expressão zombeteira usada pelo oficial.
Segundo o sociólogo Muniz Sodré, autor do recém-lançado O Fascismo da Cor: Uma Radiografia do Racismo Nacional, a escravatura no Brasil tinha uma estrutura econômica, política e jurídica que o sustentava o racismo, intensificado com o advento do nazismo e a chegada das ideias fascistas, convertendo-se em sentimento institucionalizado. Logo após a Abolição, médicos e psiquiatras higienistas montaram um plano para intervir na demografia brasileira, de maneira que se tornasse antagônica aos negros. “Desde o século XIX o negro é visto como foco de criminalidade a ser reprimido, se não mais com o chicote, com a polícia batendo e matando”, diz o professor.
Vozes críticas
Roberto Damatta
Antropólogo
“Jogadores ingleses se manifestaram a favor do Vini Jr., menino aqui de São Gonçalo, Niterói, jovem muito inteligente e brilhante em ideias, com respostas das boas. A Inglaterra não teve um ditador como um Franco ou um Salazar em seu território, como foi na Espanha e em Portugal, mas o Império Britânico também mostrava seu racismo nas colônias pelo mundo, como na Índia”
Muniz Sodré
Sociólogo
“Há trabalho análogo à escravatura no Sul, e há quem pregue, com técnicas de convencimento, que o inimigo é o diabo. E quem é o diabo da sociedade brasileira senão o preto, com sua dança, ídolos, cultos? O racismo ainda é extensivo e cruel e não se sabe bem os caminhos por onde temos de transitar”
Casos de racismo que ganharam grande repercussão
George floyd
O músico americano de 47 anos foi assassinado em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, estrangulado por um policial branco, Derek Chauvin, que ajoelhou sobre seu pescoço por 8 minutos e 46 segundos. Floyd foi abordado por uma patrulha da polícia depois de ter usado uma nota falsa de US$ 20 para comprar cigarros
Ludmilla
Durante a transmissão do Carnaval de 2016 pela RedeTV!, a socialite Val Marchiori apresentou desfiles das escolas e, no Sambódromo carioca, disse que o cabelo de Ludmilla estava “parecendo um bombril”. A cantora perdeu o processo que abriu porque, segundo decisão da Justiça, a apresentadora apenas usou seu “direito de crítica”
Giovanna Ewbank
Em julho de 1922, a atriz e seu marido, o ator Bruno Gagliasso, estavam em um restaurante em Portugal com os filhos adotivos, Titi e Bless, e uma mulher agrediu verbalmente os meninos negros e uma família angolana na mesa ao lado. Giovanna confrontou a agressora, que foi levada alguns minutos depois pela polícia portuguesa
Seu Jorge
Em outubro do ano passado, o cantor se apresentou no Grêmio Náutico União, em Porto Alegre. Pessoas que a polícia não conseguiu identificar xingaram o artista de macaco e imitaram os sons do animal. Seu Jorge publicou vídeo sobre o caso em redes sociais, diante da bandeira do Rio Grande Sul, agradecendo a solidariedade recebida de muitos gaúchos