Internacional

O ditador venceu

Após 12 anos de guerra civil, Bashar al Assad garante permanência no poder e amplia apoios no Oriente Médio, como o mais importante deles: da Arábia Saudita, que era uma inimiga histórica

Crédito: Abdulla Al-Neyadi

De volta: o presidente sírio, Bashar Al Assad, esteve em Jeddah, para a cúpula da Liga Árabe (Crédito: Abdulla Al-Neyadi)

Por Denise Mirás

Com a Síria aceita de volta pela Liga Árabe, Bashar al Assad conseguiu o que pretendia: ser reconhecido como comandante de fato do país esfacelado por uma guerra civil que chega a 12 anos. Único ditador sanguinário a escapar do rastro da Primavera Árabe, movimento popular de 2011 que reivindicava o básico — liberdade — em meio ao autoritarismo predominante no Oriente Médio e Norte da África, Al Assad se manteve no poder com o apoio do Irã e da Rússia. Expulsa da Liga Árabe em 2011 pelas carnificinas de Al Assad — que incluíram prisões, torturas e assassinatos de milhares, até com armas químicas —, a Síria teve esse governante tolerado por ele ser considerado “menos pior” do que os extremistas do Estado Islâmico, por exemplo — mesmo com meio milhão de mortos sob seu governo. É sob escombros que a Síria retorna à Liga Árabe. Os conflitos e interesses na região são tão complexos que inimigos de décadas se tornam aliados. Muna Omran, pesquisadora sênior do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (Gepom), lembra que a Síria foi fundadora do bloco em 1945, com Egito, Líbano, Iêmen, Iraque, Transjordânia (atual Jordânia) e Arábia Saudita, além de representantes dos árabes palestinos. As Forças Armadas do país eram controladas pela família Al Assad, que se valia de grande repressão para seguir no poder, explica a culturalista. “E, mesmo sem democracia, o Estado laico garantiu apoio a Al Assad de minorias religiosas e da elite sunita da capital Damasco, que temia a Al Qaeda e o Estado Islâmico — que chegou mesmo a ser financiado por países do Golfo como a própria Arábia Saudita.”

Instalado na presidência em 2000, depois da morte do pai Hafez, Bashar al Assad sobreviveu na Primavera Árabe ao racha no exército, que sustentava a família desde o golpe de Estado em 1970, e também à oposição de dezenas de grupos que reuniram cerca de 100 mil combatentes nestes 12 anos de guerra. Com o tempo, diz Muna, houve uma acomodação, também pelo controle de algumas regiões com apoio de Irã e Rússia e até “uma certa intervenção da China”. Mesmo a tragédia do terremoto de fevereiro deste ano, que abalou a Turquia e a Síria — justamente na região norte, onde estavam os maiores focos de resistência —, beneficiou Al-Assad, hoje com 57 anos, pela chegada de ajuda humanitária de adversários e até o levantamento de sanções dos EUA.

Mesmo sob forte repressão, manifestantes seguem protestando contra o ditador sírio em Azaz, noroeste do país (Crédito:Khalil Ashawi)

De inimigo a aliado

“Peças começaram a se mexer e houve uma mudança geopolítica na região”, diz a pesquisadora. No último dia 19, Mohammad bin Salam, o MbS, príncipe que governa a Arábia Saudita, recebeu Al Assad para a cúpula da Liga Árabe — mesmo depois de MbS ter tentado derrubar o presidente sírio financiando grupos armados em cooperação com os EUA. Das 22 nações que se manifestaram sobre a Síria no bloco, apenas o Catar foi contra. Opositores de Al Assad veem a aceitação da Liga Árabe como um “sinal verde” para o ditador sírio seguir com seus crimes de guerra e contra a humanidade.

O príncipe MbS, que já recebeu de Donald Trump a Joe Biden e retoma relações com Israel (recentemente falou com o primeiro-ministro extremista Benjamin Netanyahu), recepcionou Al Assad na cúpula da Liga Árabe (ao lado da Coreia do Norte, a Síria reconhece a região de Donbass como russa), mas também Volodymir Zelensky, que foi reclamar apoio para a Ucrânia. Enquanto isso, a contrapartida pelo reingresso, por parte da Síria, passaria por “sugestões” dos EUA: retorno seguro dos exilados sírios; ataque efetivo ao Captogan, a “cocaína de pobre” produzida com incentivo do governo sírio para sobreviver a sanções econômicas e que vem exponencialmente se espalhando; e contenção da influência do Irã na região. “A Síria assegurou sua volta à aliança árabe, mesmo porque os vizinhos querem o retorno dos refugiados de guerra que passaram a abrigar. Só no Líbano são dois milhões”, observa Muna Omran.

Mohammad bin Salam, o MbS, príncipe da Arábia Saudita, dá cartas até para o Ocidente (Crédito:(Leon Neal/Pool Photo via AP)

Interesses econômicos pela reconstrução da Síria já eram vistos em empreendimentos instalados em zonas mais seguras a partir da “batalha das batalhas”, com a reconquista da cidade de Aleppo pelo governo no fim de 2016. Mas o protagonismo que o país já teve na região não será retomado nem a médio prazo, no entender da especialista. “Al Assad não tem o carisma do pai, que também era violento, mas demonstrava pragmatismo. O filho, não. Segue à risca os preceitos do partido Baas, no poder desde 1963”, observa. “Esse protagonismo está muito mais para a Arábia Saudita. O príncipe MbS, de 37 anos, é tão sanguinário quanto o líder sírio, mas é inteligente a ponto de estar dando cartas até para o próprio Ocidente. É como se dissesse: ‘Olha como podemos ter vida própria, independentemente de vocês’. Está jogando e sabe jogar.”