Brasil

Entenda como a guerra das CPIs imobiliza o governo Lula

Comissões de Inquérito expõem falhas na articulação do Palácio do Planalto e viram palco para os bolsonaristas. Estratégia errada fez o governo ficar encurralado, com risco de novas derrotas

Crédito: Vini Loures

Tensão: deputado Arthur Maia (no centro) preside a CPMI dos Ataques Antidemocráticos. A seu lado, a relatora Eliziane Gama (Crédito: Vini Loures)

Por Marcos Strecker e Samuel Nunes

A fragilidade de Lula no Congresso preocupa os aliados e já começa a ter consequências práticas. A primeira foi a derrota na revisão do marco do saneamento, que o presidente tentou mudar por decreto. Na Medida Provisória que reorganizou a Esplanada dos Ministérios, a maioria oposicionista já impôs vários dissabores para o PT. A proposta do relator Isnaldo Bulhões (MDB), aprovada na Câmara, empareda o governo e tira o poder de aliados do Planalto. Lula teve de ceder para não correr o risco de ver sua reestruturação ministerial caducar no dia 1º. Outras MPs seguem a mesma toada. Até a aprovação do arcabouço fiscal pode ser creditada mais ao interesse do Centrão e da maioria conservadora do Legislativo do que à força governista. Afinal, boa parte da bancada do PT criticou o projeto de Fernando Haddad e partidos aliados, como PSOL e Rede, votaram contra. O governo Lula desembolsou nas últimas semanas cerca de R$ 1 bilhão em emendas parlamentares e restos do orçamento secreto do governo Bolsonaro para tentar atrair os congressistas, mas o resultado até agora tem sido pífio.

Nada é mais emblemático do vale-tudo antigoverno no Legislativo do que as CPIs que começam a ser instaladas. O Palácio do Planalto vai ter muito trabalho para evitar que esses colegiados se transformem em palco da oposição, prejudicando ainda mais sua agenda.

O mais importante é a Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) dos Atos Antidemocráticos, que os governistas precisaram aceitar a contragosto. O enrosco é culpa do próprio governo, que tentou desde o início impedir a investigação do Legislativo sobre os atos golpistas.

Os aliados do Planalto, que conseguiram a maioria depois de muita negociação, devem tentar jogar sobre Bolsonaro a responsabilidade pela intentona golpista.

Já os partidários do ex-presidente querem lançar a tese estapafúrdia de que infiltrados de esquerda causaram o quebra-quebra. Diante da falta de evidências, tentam culpar o governo Lula por uma suposta omissão ou conivência. Os governistas lutam para conquistar o protagonismo nas discussões.

Bate-boca: senador Otto Alencar (de frente, à dir.) discute com o senador Marcos do Val (à esq.) na instalação da CPMI (Crédito:Gabriela Biló)

Mas até isso parece difícil. Aliados de peso que se destacaram da CPI da Covid, como Omar Aziz (PSD) e Renan Calheiros (MDB), fugiram da comissão diante da falta de orientação do governo. O presidente da CPMI será o deputado Arthur Maia (União), um nome de confiança de Arthur Lira e que se diz independente do governo.

A relatoria ficou a senadora Eliziane Gama (PSD), uma parlamentar mais próxima do governo. Maia cobrou na abertura dos trabalhos “mediação e respeito” durante a investigação. Mas a sessão que instalou a CPI, presidida pelo decano do Senado, Otto Alencar (PSD), já começou com um bate boca. O senador bolsonarista Marcos do Val (Podemos) tentou impedir a indicação de Eliziane alegando que ela é aliada do ministro da Justiça, Flávio Dino, que, segundo ele, deveria ser investigado pelos atos golpistas. Alencar acusou Do Val de tumultuar os trabalhos e disse que a CPMI não será tratada como “delegacia”.

O clima conflagrado deve continuar. Entre os cotados a depor estão o ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A disposição dos governistas também é convocar Jair Bolsonaro, ponto que deve gerar uma das maiores disputas durante as sessões.

A oposição tentará emplacar nomes como Flávio Dino e o general Gonçalves Dias, conhecido como GDias, que foi nomeado por Lula para o GSI, mas caiu após a revelação de vídeos em que circulava entre os baderneiros no dia 8 de janeiro.

O governo ainda aposta que pode controlar a dinâmica das sessões. A investigação pode trazer poucos elementos novos, visto que já existe uma apuração da PF, acompanhada pelo STF, além de outra CPI semelhante, em curso na Câmara Legislativa do Distrito Federal. No entanto, a ideia é fazer barulho, como admitem parlamentares que vão participar do debate.

Para o senador Eduardo Girão (Novo-CE), que integrou a base de Bolsonaro na última legislatura, a comissão pode ser um caminho para mostrar a história daquele dia. “A gente precisa entender quem são os responsáveis por ação e omissão, independente se é do governo anterior ou do atual”, diz. A maioria do governo na comissão não é absoluta. Parte dos deputados e senadores indicados não tem perfil de apoio irrestrito ao governo Lula, mas estaria disposta a encarar o debate contrário ao bolsonarismo.

A deputada Jandira Feghalli (PCdoB) acredita que esse grupo poderia se alinhar ao Planalto. Ela também acredita que a CPMI deve ser concluída rapidamente, graças às investigações que já estão em curso. Ela afirma que a comissão deverá solicitar o compartilhamento de informações das outras investigações.

Contra o MST

O cenário é ainda mais problemático na CPI que vai investigar as ações do MST. O movimento, que está prestes a completar 40 anos de existência, sempre foi alvo de críticas do agronegócio. Também é inegável a relação dos membros do grupo com o PT e a esquerda. No primeiro encontro do colegiado, na terça-feira, a baixaria tomou conta das discussões. Com maioria entre os membros, deputados de direita aproveitaram para apresentar as armas contra o MST, resgatando velhas denúncias.

Entre outros insultos, chamaram os integrantes do grupo de “marginais”, “bandidos” e “terroristas”. Um dia depois, a CPI aprovou o convite para o comparecimento dos ministros da Agricultura, Carlos Fávaro, e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira.

A estratégia é buscar elementos para culpar petistas pelas invasões promovidas pelo MST. Já os governistas tentaram defender as virtudes do MST, como as políticas para produção de alimentos com assentados, e aproveitaram para atacar os membros da mesa, muitos dos quais são investigados pelo STF, como o presidente da comissão, Tenente Coronel Zucco (Republicanos), e o relator, Ricardo Salles (PL), ex-ministro de Jair Bolsonaro.

A própria presença de Zucco já causa constrangimentos. Ele foi incluído recentemente nas investigações sobre os atos antidemocráticos, em curso no STF. Segundo o Ministério Público Federal, há indícios de que ele teria fomentado grupos que participaram das ações golpistas em Brasília. Ao mencionar o episódio na primeira sessão da CPI, a a deputada Sâmia Bomfim (PSOL) teve o microfone cortado por Zucco.

Ricardo Salles (esq.), relator da CPI do MST, e o presidente da comissão, Tenente Coronel Zucco: palco para desgastar Lula (Crédito:Brenno Carvalho)

Já Salles responde a outro inquérito, relacionado à exportação ilegal de madeira. A investigação, revelada por ISTOÉ em maio de 2021, fez com que ele perdesse o posto de Ministro do Meio Ambiente. Ambos são abertamente contra qualquer atividade do MST.

Ao ser questionado por ISTOÉ sobre a investigação contra ele, Zucco disse que estranhou o retorno após sua indicação de um fato já superado. O deputado também afirmou que não vai pautar o trabalho conforme as predileções pessoais. “A pauta da CPI é a escalada das invasões de terras. A CPI tem um modo de começar, mas não se sabe como termina. Metade dos requerimentos são do governo. Gostaria muito que todos fôssemos oposição às invasões de propriedades privadas”, disse.

Mais comissões

Essas não são as únicas comissões que prometem dar dor de cabeça ao governo. Correm por fora outras três CPIs: das Lojas Americanas, da manipulação de apostas e das ONGs da Amazônia.

A primeira pretende apurar eventuais desvios de conduta da direção da empresa, que registrou um rombo bilionário. A segunda vai tratar da manipulação de resultados em partidas de futebol. A última pretende analisar os contratos de Organizações Não Governamentais (ONGs) com o governo federal de 2002 a 2023. Segundo o autor do pedido, senador Plínio Valério, o trabalho deve se concentrar nas entidades que atuam em defesa da Região Amazônica, mas pode se estender para outras regiões.

Para o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Arnaldo Mauerberg, as CPIs podem gerar ruído na articulação do governo, mas são insuficientes para travar a pauta do Congresso. Isso porque, segundo ele, essas investigações já eram esperadas.

Ele acredita que a maior parte não deve gerar impacto na sociedade como aconteceu na CPI da Covid ou na CPI do Mensalão. “Em 1998, tivemos a CPI da Nike, que apurou a perda do título da Copa do Mundo”, lembra.

Para o especialista, o principal foco de atenções deve ser a CPMI dos Atos Antidemocráticos. Isso porque a atitude dos vândalos teve, por óbvio, muito mais repercussão. “A CPI do MST já parte de uma posição enviesada. Para o governo não deve gerar problemas. O governo sempre teve uma pauta de alinhamento com movimentos sociais”, avalia.

Deputado Júlio Arcoverde (à esq.), presidente da CPI dos Jogos de Futebol, em sessão na última terça-feira: de olho na manipulação dos resultados em partidas (Crédito:FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS)

Ligações perigosas
A Câmara e o Senado deram início, simultaneamente, a cinco CPIs que devem mobilizar o Congresso nos próximos meses

CPMI dos Atos Antidemocráticos
Instalada na quinta-feira, 25, a comissão mista de investigação (com 36 deputados e senadores) vai apurar a ação e omissão de agentes públicos durante as manifestações golpistas do dia 8 de janeiro. Pode levar aos mandantes dos ataques às sedes dos Três Poderes

CPI do MST
Iniciada na última terça-feira, 23, a comissão investigará a atuação do MST e de seus financiadores. Dominada por deputados da oposição, pode causar maior dor de cabeça ao governo pelo apoio explícito do PT ao movimento

CPI dos Jogos de Futebol
Também instalada na terça-feira, 23. Os deputados investigarão denúncias sobre esquemas de manipulação em partidas de futebol profissional no País

CPI das Americanas
Criada na quarta-feira, 17. As investigações dos deputados abordarão as inconsistências contábeis da empresa varejista, que teve um rombo estimado em R$ 20 bilhões

CPI das ONGS
Ainda sem data para instalação, esta CPI é exclusiva do Senado e vai investigar os repasses de recursos do governo para ONGs e OSCIPs no período de janeiro de 2002 a 1º de janeiro de 2023, com o objetivo de apurar eventuais fraudes