entrevista Isto É, Helio de La Peña

Entrevista

Hélio de La Peña Humorista, ator e escritor

“O humor levado a sério traz a intolerância”, diz Hélio de La Peña

Thiago Bernardes

“O humor levado a sério traz a intolerância”, diz Hélio de La Peña

Thales de Menezes, Editora Três
Edição 19/05/2023 - nº 2781

Aos 63 anos, o carioca Hélio de La Peña tem seu lugar garantido entre os grandes nomes do humorismo brasileiro, mais ainda quando se fala em televisão. Estudante de Engenharia na UFRJ, lá conheceu Marcelo Madureira e Beto Silva, criando com eles o fanzine Casseta Popular. O trio se uniu a outros universitários que faziam o jornal cômico O Planeta Diário e dessa fusão veio o programa de TV Casseta & Planeta, sucesso durante quase 20 anos na Globo. Na empreitada, De La Peña já trazia experiência televisiva como roteirista do revolucionário TV Pirata.

Hoje, escritor de quatro livros, roteirista de séries e ator bissexto em telenovelas, ele percorre o Brasil com seu show stand-up Preto de Neve. O humorista vê na plateia reações diferentes entre os apoiadores de Lula, que levam as piadas sobre o presidente de forma mais tranquila, e os bolsonaristas, que reclamam frontalmente diante de qualquer escracho com o “mito”. Curiosidade: em 1993, quando o Casseta & Planeta tinha Collor, Itamar e FHC como alvos, o jovem deputado Bolsonaro foi ridicularizado numa entrevista conduzida pelo próprio De La Peña.

Você foi roteirista do TV Pirata, sucesso de humor no final dos anos 1980, e logo depois veio o estouro do Casseta & Planeta. É muito diferente fazer rir em 1990 e em 2023?
Essa é uma pergunta recorrente. Eu acho que as pessoas não conseguem perceber que o humor está sempre em movimento. Acho que agora ficou mais evidente porque a sociedade está muito polarizada. O humor que foi praticado durante a ditadura, nos anos 1960 e 1970, ele era muito diferente do humor dos anos 1980. No Pasquim, que era o principal jornal de humor na época do regime militar, já estavam Claudio Paiva, Hubert e Reinaldo, que saíram dali nos anos 1980 para fundar o Planeta Diário. A ênfase no humor político foi sendo deixada de lado para inaugurar uma era do humor de costumes. A gente fazia jornalzinho, revista, Casseta Popular e tal, passou a escrever para o TV Pirata, e foi percebendo a mudança. A gente ficou com o Casseta & Planeta no ar de 1992 a 2010. Se a gente não tivesse acompanhado as mudanças, ainda que elas fossem sutis, a gente não teria conseguido manter uma audiência alta.

A reação do público mudou muito?
A grande diferença é que as pessoas aceitavam mais a brincadeira, até a que era feita com o político que elas admiravam e em quem elas votavam, e hoje existe uma intolerância muito grande. O resultado disso é que esse humor foi muito levado a sério. O humor não pode ser levado a sério. Eu acho natural que as coisas mudem, que as algumas piadas deixem de funcionar tanto quanto antigamente e que a gente busque outros caminhos. Mas hoje existe uma tendência de que, se você não gosta de determinada coisa, quer impedir que ela exista. As pessoas estão usando muito seu direito de crítica para apagar, para cancelar as opções que não são as delas.

O humor é constantemente cerceado pelo “politicamente correto”. O que você considera como aceitável dentro desse patrulhamento?
Ele parte de algo interessante, que é não aceitar mais uma piada que está no limite do crime, perto de praticar racismo, homofobia. Mas existe uma zona cinzenta em que o humor sai prejudicado, porque algumas vezes é uma questão de interpretação, e a pessoa acha que, por tocar naquele tema, você está sendo preconceituoso. Às vezes, você está fazendo uma piada que tenta reforçar um determinado estereótipo, para mostrar como é absurda aquela situação. E algumas pessoas já interpretam isso como preconceito. Ficou bastante complicado. Um exemplo é o Caco Antibes. No programa Sai de Baixo, ele falava “eu odeio pobre” e todo mundo ria, era fácil perceber que era um personagem fazendo um exagero com aquilo que parte da sociedade pensava e gostava de escamotear. Colocar isso hoje no ar provavelmente vai fazer algumas pessoas acharem que o próprio Miguel Falabela está sendo preconceituoso com os pobres. Seu personagem era uma hipérbole, um exagero dessa atitude. Por isso que eu digo que pessoas estão levando a sério o humor e isso traz a intolerância.

O Casseta & Planeta brincava muito com Collor, Itamar, FHC… Com o Bolsonaro é mais dfícil? Parece que a rejeição a ele ficou tão forte que é difícil fazer humor com sua figura.
Não acho que seja difícil fazer humor com o Bolsonaro, até porque ele é uma piada pronta. Talvez o mais difícil para o comediamnte seja competir com a realidade do Bolsonaro. O maior problema é a agressividade de seus apoiadores, um pessoal que não aceita qualquer tipo de crítica. É uma irritação natural dos extremos. Entre os eleitores do Lula, você vai desde o cara que está votando nele porque não suporta o Bolsonaro até o cara que vota sempre no Lula, independente das atitudes que ele tome. O grupo do Bolsonaro começou mais amplo, partindo daquelas pessoas que estavam rejeitando o PT por conta dos escândalos recentes, de Mensalão, Petrolão e tudo mais, então houve um movimento de “não queremos PT no poder”, e isso abrangeu bastante gente. Com o tempo, foi ficando evidente que a visão que Bolsonaro tem de sociedade era contrastante com a de muitos que tinham votado nele, e esses foram deixando esse apoio de lado. Hoje ele praticamente ficou reduzido àquele chiqueirinho que ficava a postos em Brasília. Eles são bem intolerantes. Eu tenho feito shows pelo Brasil. Quando você faz piada com o Bolsonaro, tem gente que reclama. A pessoa está rindo o show inteiro, ri quando estava zoando o Lula, mas, falou do Bolsonaro, aí não pode. Uma coisa muito negativa. No extremo da esquerda também existe esse comportamento, mas está muito mais evidente no comportamento da extrema-direita.

Na Inglaterra, pessoas nas redes querem cancelar o grupo Monty Phyton, sucesso seminal de humor na TV e no cinema nos anos 1970, por considerá-lo não inclusivo, por não ter mulheres ou negros em sua trupe de seis humoristas homens e brancos. É uma tentativa de reescrever o passado?
Isso é uma coisa muito chata, muito desagradável, você olhar pelo retrovisor e querer que o passado seja diferente. Pelo amor de Deus, não tem a menor condição. Uma série sobre Chernobyl também teve esse tipo de crítica, de afirmar que a série não era inclusiva, não tinha atores negros. Olha, a série se passa no interior da Rússia, não tinha negro lá. Então por que inventar, por que criar uma realidade paralela para atender seu desejo? Temos que pensar daqui para frente.

É uma mudança em progresso?
A gente está passando por um movimento pendular, estamos indo muito para um lado fazendo uma compensação de uma época que não tinha nenhuma preocupação quanto a isso. Creio que, em longo prazo, a gente atinja uma coisa mais razoável. Durante 20 anos eu trabalhei no audiovisual e vi muito pouco negro em posições hierarquicamente estratégicas. E hoje essa preocupação existe. Ontem mesmo estava trabalhando na produção de uma série em que você tem um diretor negro e um diretor de fotografia negro, coisa que antes não se via. Fiz um filme, Correndo Atrás, no GloboPlay, a partir de um livro meu, Vai na Bola, Glanderson!. Fui o roteirista e o Jeferson B foi o diretor, com a preocupação da presença do negro não só no elenco como também nos bastidores. Em contraste até com a produção de Cidade de Deus, um filme que na tela é predominantemente negro, mas absolutamente branco na produção.

Os comediantes negros de stand-up nos Estados Unidos baseiam muito seus roteiros em questões racistas. Como você vê esse ativismo no palco?
Durante muito tempo, isso não acontecia, então é natural que você traga isso. Essa cobrança vem muito da audiência branca que sente um certo desconforto quando é questionada, quando o privilégio é exposto. Acho que é natural, não tem problema nenhum. As pessoas ficam incomodadas de haver um zoação com uma galera branca. Mas tem a brincadeira de dizer que é apenas uma hora de zoação no show, contra mais de 500 anos de sacanagem com os pretos na vida real. Esse tema existe, ficou muito tempo guardado num armário e agora está exposto.

Os fãs insistem em pedir a volta do Casseta & Planeta à TV?
Sim. Acho natural e até bacana que isso aconteça, porque é sinal que o trabalho da gente marcou. Acontece que a vida vai indo para a frente, você vai fazendo outras coisas, tendo novas parcerias, descobre outros interesses. É legal ver as pessoas demonstrando isso, mas não afeta nossa vontade de não voltar a fazer o que já fizemos. Seria criar uma comparação que só iria nos desfavorecer, temos a consciência do peso e da importância do trabalho que a gente fez. Eu tenho feito shows de stand-up pelo Brasil, que me colocam em contato com gente nova, enquanto tento também trazer a minha geração para os comedy clubs.

Hoje o stand-up é o caminho mais acessível para quem acredita ter talento para o humor?
É preciso perceber onde está o humor no momento. Nos teatros, nos comedy clubs, ou na telinha do celular, no YouTube, nos memes. Com uma boa ideia e um celular, o cara pode ir longe sem sair de casa. O melhor exemplo é Whindersson Nunes, que morava no interior do Piauí e se mostrou para o País inteiro na rede, se tornou uma grande estrela. Existe também o caminho das séries. Este ano participei da série A Sogra que Te Pariu, da Netflix, e do Encantado’s, no GloboPlay. Fiz também uma série chamada Humor Negro, minha participação vai ao ar no segundo semestre. Hoje existe uma grande oferta de gente produzindo humor, e quando você tem tanta coisa a qualidade varia, tem coisas boas, mais ou menos e ruins.

Hoje vemos programas na TV que buscam coisas engraçadas, sem recorrer a textos escritos por humoristas. Como Que História É Essa, Porchat?, no qual famosos contam casos. É uma nova forma de humor?
O humor ficcional não acabou, mas tem que conviver com outros formatos. Esse é humor confessional. O próprio stand-up é uma coisa confessional, você está ali relatando experiências que você teve. O Porchat mostra que todo mundo tem uma história divertida, pode entreter bastante gente com algo pelo qual passou. Os talk-shows da Tatá Werneck e do Danilo Gentili são programas comandados por comediantes. Esses programas de entrevistas começaram nos Estados Unidos com comediantes, como o Johnnie Carson. O Jô Soares se referenciava muito no Carson, a coisa da caneca, de ter uma banda.

Você se acha um cara engraçado? A gente vê humoristas extremamente sérios fora do trabalho.
Eu sou essa decepção. [risos] As pessoas ficam com a expectativa de que, ao me encontrar, vão morrer de rir. Não rola. Escrevo o texto, ensaio e aí entrego algo engraçado. Não sou animador de rodinha de mesa de bar. O escritor de humor é, de maneira geral, um cara tímido, e muitas vezes mal-humorado. Mas as pessoas pedem sempre para que ele faça algo engraçado. O Renato Aragão já contou de um cara no aeroporto que pediu para ele dar uma cambalhota! O Chico Anysio, se pediam para ele contar uma piada, dizia: “Se eu fosse proctologista você ia pedir para que eu fizesse um exame aqui?”.