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As nebulosas transações de Michelle, Cid, Bolsonaro & cia

Suspeito de coordenar uma “rachadinha palaciana”, o tenente-coronel Mauro Cid é o elo entre vários escândalos de Jair Bolsonaro. O uso ilegal de dinheiro público para benefício privado, agora revelado, complica a vida do ex-presidente, mas as apurações podem tomar um rumo mais perigoso: comprovar o vínculo dele com os atos golpistas

Crédito:  DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO; CHANDAN KHANNA/AFP

Bolsonaro, família e seu entorno: evidências de irregularidades colocam o ex-presidente na mira da Justiça e podem comprometer seu futuro político (Crédito: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO; CHANDAN KHANNA/AFP)

Por Marcos Strecker

As acusações sobre a prática de rachadinhas por Jair Bolsonaro e seu clã se acumulam desde o início da sua carreira política. Aparentemente as benesses trazidas pela Presidência não mudaram velhos hábitos. A PF encontrou indícios de uma “rachadinha palaciana”, esquema que teria sido coordenado pelo ex- ajudante de ordens Mauro Cid, um dos homens mais próximos dele e figura que se torna o elo central entre os diversos escândalos que cercam o ex-presidente. O militar foi preso no último dia 3 por suspeita de articular um esquema de fraude em certificados de vacinação, um dos episódios mais recentes.

O tenente-coronel é um nome que se iguala em importância simbólica a Fabrício Queiroz, amigo do peito de Bolsonaro e ex-PM apontado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como aquele que executava o esquema de rachadinha no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Alerj. Ou a PC Farias, aquele personagem oculto que se encarregava da vida nababesca do ex-presidente Fernando Collor e que foi responsável pela sua queda, após a revelação da ligação entre os dois.

Áudio comprometedor

“O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que
fez com o Flávio, vai dizer que tem uma assessora (…) dando a parte
do dinheiro para a Michelle”
Mauro Cid, em áudio enviado a Giselle Carneiro, em 25 de novembro de 2020

As novas suspeitas têm origem em um inquérito que assombra Bolsonaro desde agosto de 2021: o que apura o vazamento ilegal de dados sigilosos da PF. Em uma live, quando o ex-presidente atacou as urnas eletrônicas e tentou desacreditar o TSE, ele expôs um relatório sobre um ataque hacker ao TSE.

Nada que comprometesse a Justiça Eleitoral, mas suficiente para criar teorias conspiratórias. Mauro Cid teria ajudado a divulgar ilegalmente documentos restritos, o que levou à quebra do sigilo de seu celular e emails. Isso permitiu à PF chegar a um manancial de novas suspeitas.

As comunicações mostram Cid dando orientações a assessoras de Michelle Bolsonaro para que despesas da ex-primeira-dama fossem pagas em dinheiro vivo, conforme divulgou o UOL. Trata-se de uma prática que lembra rachadinhas já investigadas que cercam a família Bolsonaro.

Segundo a PF, pagamentos em dinheiro vivo e de forma fracionada, como foi constatado, representam uma forma de dificultar a identificação de quem repassou o dinheiro.

Os depósitos e os sinais de alerta

A PF constatou que Mauro Cid fez seis depósitos diretamente para Michelle entre março e maio de 2021, num total de R$ 8,6 mil. Também foram constatados seis depósitos nesse mesmo período para Maria Helena Braga, tia de Michelle, totalizando R$ 8,52 mil. Essa parente da ex-primeira-dama fez acender o sinal de alerta para Mauro Cid, quando as ajudantes de Michelle solicitaram o pagamento de uma despesa médica para ela no valor de R$ 950. Ele disse que essa quitação precisava ser feita em dinheiro, por orientação do presidente, para “evitar interpretações equivocadas”.

Maria Helena Braga também recebeu 45 depósitos da equipe de Mauro Cid entre 2019 e maio de 2022, no valor mensal de R$ 2.840, somando pouco mais de R$ 80 mil.

A defesa de Bolsonaro nega irregularidades e disse que “100% do custo de vida da família do presidente saiu exclusivamente da sua conta pessoal”. A sua defesa afirma que a Ajudância sacava mensalmente valores da conta pessoal do presidente para realizar pagamentos em espécie a pequenos fornecedores por “razões de segurança”. Uma planilha divulgada pelos defensores do ex-presidente indica que seus assessores sacaram R$ 644 mil em quatro anos, o equivalente a R$ 13 mil por mês.

Mas a PF tem outra interpretação. Para os investigadores, Mauro Cid, na condição de ajudante de ordens ou por intermédio de seus auxiliares, “desviou ou concorreu para desviar dinheiro público oriundo de suprimento de fundos do governo federal, em valor total ainda a ser apurado, destinado ao atendimento de despesas da Presidência”.

Essa rubrica se destina a recursos para a quitação de despesas urgentes do Palácio do Planalto. Nesse caso, o saque em espécie é exceção e precisa ser justificado. Só pode ser usado para atender ao interesse público. Não poderia ser usado, obviamente, para o pagamento de despesas da ex-primeira-dama nem seus parentes. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, disse ver indícios fortes de desvio de dinheiro público.

“Não tem como mandar esse tipo de boleto. (…) Quando for assim, me manda só o pedido do dinheiro e vocês pagam por aí. (…) Não é gasto nem do presidente nem da dona Michelle! (…) Deve ser de um terceiro que ela está pagando aí a conta”
Mauro Cid, sobre o pagamento de boleto de um irmão de Michelle

Os caminhos das evidências

As evidências levaram a outro personagem-chave da ajudância de ordens. O segundo sargento Luis Marcos dos Reis, preso na operação Venire (sobre a fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro), recebeu repasses da Madeireira Cedro do Líbano, de Goiânia, e seus sócios.

Foram pelo menos R$ 25 mil na sua conta. Essa empresa tinha contratos com a Codevasf, estatal com um largo histórico de desvios, e participou de licitações do governo federal sem relação com sua atividade primária (comércio de madeiras).

As investigações não apontaram nenhum vínculo entre Reis, a empresa e seus sócios que justificasse essa movimentação. Quando o dinheiro caía na sua conta, ele o sacava em um caixa eletrônico. Fez três depósitos para pagar os gastos no cartão de crédito de Michelle, além de 12 depósitos em dinheiro na conta da tia dela.

As mensagens obtidas pela PF também mostram que Michelle utilizava para pagar suas contas o cartão de crédito disponibilizado por uma amiga, Rosimary Cardoso Cordeiro, uma assessora parlamentar lotada no gabinete do senador Roberto Rocha, do PTB-MA.

Uma funcionária da ex-primeira-dama, Giselle da Silva, solicitou a Mauro Cid que fizesse pagamentos mensais a Rosimary para quitar essas faturas.

As justificativas da defesa de Bolsonaro nesse caso são curiosas, para não dizer debochadas. Michelle teria usado o cartão de crédito de uma amiga porque, segundo ela, “Bolsonaro é muito pão duro”. Apenas para lembrar: as joias sauditas destinadas a Michelle flagradas pela Receita Federal são avaliadas em R$ 16,5 milhões.

A contabilidade paralela recém-desbaratada é apenas uma das frentes de investigação da PF. Mauro Cid é o elemento central de várias apurações. Ele era uma das pessoas mais próximas de Bolsonaro. Recebia e enviava mensagens em seu nome e cuidava de seus cartões de crédito, além de cuidar do rotina do ex-presidente. É o pivô no caso da fraude no cartão de vacinação, pelo qual depôs na PF na última quinta-feira, 18. Ficou em silêncio. Só nesse processo, pode ser condenado por crimes como associação criminosa e inserção de dados falsos em sistemas de informação. No caso das joias, foi igualmente dele a iniciativa de tentar liberar no apagar das luzes do últimos governo os kits de luxo milionários presenteados pela Arábia Saudita ao ex-chefe no Aeroporto de Guarulhos.

“Eu acho que você poderia falar assim: Dona Michelle, que é que a senhora acha da gente fazer um cartão para a senhora? (…). Pra evitar que a gente fique na dependência da Rosy”
Cintia Borba Nogueira, em áudio enviado a Giselle Carneiro em 30 de outubro de 2020

Ele foi indiciado pelo crime de violação de sigilo funcional ao participar da transmissão de 2021 em que Bolsonaro vazou uma investigação sigilosa da PF (Cid teria sido o responsável por publicar o conteúdo do inquérito na internet, para que Bolsonaro o divulgasse).

A PF também concluiu em dezembro passado que ele ajudou o presidente a cometer incitação ao crime ao associar as vacinas contra a Covid a um risco maior de contrair Aids. No Código Penal, essa conduta ilegal pode dar prisão de três a seis meses.

No momento, as mensagens originadas de Mauro Cid ganham uma nova dimensão, compondo o quadro do ataque à democracia perpetrado pelo bolsonarismo.

As comunicações estão abrindo caminhos para a apuração da tentativa de golpe após a eleição do ano passado, trazendo revelações sobre a participação de pessoas no entorno do ex-presidente.

O faz-tudo de Bolsonaro já havia sido inquirido anteriormente por ter mantido contato com o blogueiro Allan dos Santos. Agora, segundo a transcrição de áudios obtida pela ISTOÉ, Cid teria dado orientações ao ex-major do Exército Ailton Barros, preso também na Operação Venire, para apagar mensagens que poderiam comprometer um contato denominado “PR 01”, também identificado como “PR”. (Essa é a designação do presidente entre seus colaboraores).

Nelas, Barros se colocou à disposição para incitar grupos de manifestantes para ataques ao STF. Bolsonaro disse em depoimento à PF não conhecer essas orientações e que tinha apenas contatos esporádicos com Barros em período eleitoral. Para a PF, há fortes indícios de que Barros, além de ter proximidade com Mauro Cid, também tinha um contato direto com o ex-presidente.

Ação golpista

Esse arsenal de informações que tem como ponto de partida as comunicações de Mauro Cid mostra movimentações concretas para reverter o resultado do pleito. Em um dos momentos mais reveladores, Ailton Barros discute medidas com um coronel Élcio, que seria o coronel Élcio Franco – ex- secretário-executivo de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde e antigo assessor da Casa Civil. Segundo a PF, Franco e Barros tentaram convencer os membros do Alto-Comando a aderir ao plano criminoso, principalmente por meio do general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, então comandante de Operações Especiais (COpEsp). Este seria o militar com a “tropa na mão”.

Nas mensagens, Franco se mostra decepcionado com o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, que estaria “com medo das consequências”. Diante da hesitação, Élcio sugere encaminhar o assunto pelo “Mario”, que seria o general Mário Fernandes. No final, Barros critica as Forças Armadas e diz que “esse alto comando de merda não quer fazer as porra”.

Élcio Franco, ex-secretário-geral do Ministério da Saúde, discutiu ação militar (Crédito:Sergio Lima)

São diálogos que expõem o frenesi golpista nos momentos finais do governo Bolsonaro. Ou seja, havia uma movimentação concreta que ainda precisa ser apurada, inclusive com a participação de militares.

Uma das linhas de investigação da PF, inclusive, é de que o dinheiro da Ajudância de Ordens tenha sido utilizado para bancar atos antidemocráticos. No depoimento à PF na última terça-feira, mencionado anteriormente, Bolsonaro diz que nunca “orientou ou participou de qualquer ato de insurreição ou subversão contra o Estado de Direito”.

Chamado para dar depoimento sobre a fraude nas vacinas, ele disse que desconhecia qualquer movimentação de Mauro Cid nesse sentido. Só teria tido conhecimento da adulteração quando o assunto começou a ser divulgado pela imprensa.

Como fica o futuro de Mauro Cid

Já era esperado que o ex-mandatário se eximisse de qualquer responsabilidade, como sempre fez. Os seus aliados estão preocupados, mas esperam que Mauro Cid assuma sozinho a culpa pelo episódio ­— e também pelos outros casos.

O ex-braço direito de Bolsonaro, no entanto, dispensou o advogado Rodrigo Roca, ligado à família Bolsonaro, e contratou Bernardo Fenelon, especialista em delação premiada.

Pode ter agido assim por influência de seu pai, o general Mauro César Lorena Cid, que foi amigo de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras (Aman) nos anos 1970 e ganhou no seu governo a chefia do escritório brasileiro da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), posto cobiçado em que ficou até o início deste ano.

A prisão do ajudante de ordens já colocou em evidência os negócios e as atividades de sua família nos EUA. Seu irmão, Daniel Cid, foi o criador e administrador do site “brasileiros.social”, que teria abrigado uma cópia do inquérito sigiloso da PF vazado por Bolsonaro. Ele foi ouvido pela PF por isso e admitiu ter colocado no ar links relacionados a arquivos a pedido do irmão.

Daniel, que já trabalhou em empresas de tecnologia, vive em uma mansão cinematográfica na Califórnia avaliada em US$ 1,7 milhão e registrada em 2019 em nome da “Cid Family Trust”, segundo noticiou o portal Metrópoles. Daniel Cid também teria adquirido uma casa em Miami, na Flórida.

“O Freire [general Marco Antônio Freire Gomes] não vai… Você não vai esperar dele que tome a frente nesse assunto. (…) Não é nem o COTER que tem a tropa na mão, nem o comandante do Exército. Quem tem a tropa na mão é o comandante de operações especiais”
Coronel Élcio Franco

NOS EUA Irmão de Mauro Cid (abaixo), Daniel Cid criou site bolsonarista e vive em mansão avaliada em US$ 1,7 milhão

Quando Mauro Cid foi preso, a PF apreendeu na sua casa US$ 35 mil e R$ 16 mil em espécie, e por isso o ex-ajudantes de ordens também passou a ser investigado por lavagem de dinheiro. Mensagens encontradas no seu celular revelam remessas de dinheiro para o exterior.

Ele tem uma conta na Flórida (EUA) no BB Americas, subsidiária internacional do Banco do Brasil. A PF passou a suspeitar que o próprio Bolsonaro tivesse uma conta na instituição. Diante dessa revelação, os advogados do ex-presidente confirmaram que ele transferiu recursos para uma conta de sua titularidade nos EUA.

Segundo sua defesa, isso ocorreu porque o ex-chefe do Executivo acredita que “o atual governo não irá conduzir a economia corretamente”. O ex-mandatário enviou, ao todo, US$ 135 mil para uma conta no BB Americas. Ela teria sido aberta em dezembro de 2022 com recursos oriundos de uma conta-poupança no Brasil. Tudo ainda será escrutinado.

(Crédito: Divulgação)

O comandante do Exército, general Tomás Paiva, declarou em audiência na Câmara, na quinta-feira, que a prisão de Mauro Cid “cumpriu as prerrogativas e a lei conforme prevê a Constituição”. Isso mostra que os militares, além de não aderirem ao golpe, estão cada vez mais distanciados das estripulias de Bolsonaro.

De acordo com um oficial que atua na cúpula do Comando do Exército, Cid foi procurado diversas vezes, até mesmo por generais, por causa do seu comportamento ao lado do presidente. “Aquele tipo de macaquice que o Cid fazia ali em volta do Bolsonaro estava constrangendo as Forças Armadas”, diz.

Internamente, a avaliação é de que o poder “subiu à cabeça” do ajudante de ordens, que, deslumbrado, teria demonstrado uma certa arrogância ao não ouvir companheiros de farda. Sobre uma eventual delação do ex-braço direito do presidente, a leitura é que, a princípio, Cid não vai entregar o ex-chefe. “A não ser que se sinta traído, mas aparentemente ele ainda não se convenceu de que foi abandonado.”

No final, é que é cada vez mais impossível dissociar Bolsonaro dos rolos de Mauro Cid na Justiça. O ex-faz-tudo pode comprometer seu futuro político e o de Michelle. Mas, principalmente, pode deixar o antigo chefe mais perto da cadeia.

“Esse alto comando de merda que não quer fazer as porra. Olha a tese defensiva que o FG [general Marco Antônio Freire Gomes] sabe, que já tá usando, que o Élcio sabe.
Não cabe fazer pressão no PR. Os senhores sabem de tudo”
Ex-major Ailton Barros

Ajudante lembra caso PC Farias

SOMBRA O motorista Eriberto apontou elo entre PC Farias e Collor (Crédito:Divulgação)

Mauro Cid pode representar para Jair Bolsonaro o que PC Farias significou para Fernando Collor: o elo incontestável de um presidente com negócios escusos. O impeachment de Collor, em 1992, foi determinado depois que uma reportagem exclusiva de ISTOÉ mostrou os vínculos do então presidente com a rede de corrupção engendrada por PC Farias, tesoureiro de sua campanha ao Planalto. O empresário, sem cargo no governo, comandava um esquema de cobrança de propinas em troca de tráfico de influência e loteamento de cargos. Na edição de 8 de julho daquele ano, a revista publicou entrevista com o motorista Eriberto França, que trabalhava sob ordens de Ana Acioly, secretária particular de Collor. Ele declarou que a empresa Brasil-Jet, de PC Farias, pagava despesas da família do presidente. Convocado pela CPI do impeachemnet, Eriberto confirmou as declarações dadas a ÌSTOÉ. Foram apresentados como provas, entre outros documentos, o recibo de compra de um Fiat Elba, em poder de Collor. Na CPI, Eriberto foi questionado sobre suas intenções. “Sou patriota”, foi a resposta. Collor deixou o poder em 2/10/1992.

Colaborou Gabriela Rölke